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sábado, 29 de novembro de 2025

A substância criadora "eitr"

 Na cosmogonia nórdica, a substância "eitr" ("veneno") desencadeia um papel importante na criação: o nascimento de Ymir, o primeiro ser vivo. Essa substância correu dos rios gelados de Élivágar, do mundo do frio, até o Ginnungagap onde acumulou camadas de gelo até ser derretido pelo calor do mundo de fogo. Fotos de Internet.

A vaca Auðhumbla libertando Buri (Búri) do gelo.

 Na Edda em Prosa, a substância é descrita como: kvikudropar (gotas correntes de fluido). Isso é dito no Gylfaginning:

Þá mælti Hárr: "Ár þær, er kallaðar eru Élivágar, þá er þær váru svá langt komnar frá uppsprettum, at eitrkvika sú, er þar fylgði, harðnaði svá sem sindr þat, er renn ór eldinum, þá varð þat íss. Ok þá er sá íss gaf staðar ok rann eigi, þá hélði yfir þannig, en úr þat, er af stóð eitrinu, fraus at hrími, ok jók hrímit hvert yfir annat allt í Ginnungagap."

Þá mælti Þriði: "Svá sem kalt stóð af Niflheimi ok allir hlutir grimmir, svá var allt þat, er vissi námunda Múspelli, heitt ok ljóst, en Ginnungagap var svá hlætt sem loft vindlaust. Ok þá er mættist hrímin ok blær hitans, svá at bráðnaði ok draup, ok af þeim kvikudropum kviknaði með krafti þess, er til sendi hitann, ok varð manns líkandi, ok var sá nefndr Ymir, en hrímþursar kalla hann Aurgelmi, ok eru þaðan komnar ættir hrímþursa..."


Hárr disse: "Quando esses rios que são chamados Élivágar vieram de tão distante de suas fontes, fermentados venenos os acompanhou endurecendo como escória quando corre do fogo, e se transformou em gelo. E então quando esse gelo se formou e se solidificou uma chuva que surgiu do veneno, verteu em cima disso e esfriou a geada, e uma camada de gelo se formou sobre outras através do Ginnungagap."

Então Þriði disse: "Da mesma maneira que o frio e todas as coisas terríveis emanam de Niflheimr, então tudo na vizinhança de Múspell eram quente e brilhante, que o Ginnungagap estava tão moderado como ar sem vento. E então quando o sopro de calor se encontrou com o gelo, de repente descongelou e pingou, pelo poder daquele que envia o calor, a vida apareceu em gotas correntes de fluido e cresceu na semelhança de um homem; que teve o nome de Ymir, mas os Hrímþursar o chamam de Aurgelmir, e é de onde a família dos Hrímþursar surgiu." (trad. minha)

 O poema Vafþrúðnismál corrobora essa ideia: o gigante Vafþrúðnir mencionou que os gigantes nasceram das gotas de veneno (eitrdropar) de Élivágar e por isso são terríveis.

"Ór Élivágum

stukku eitrdropar,

svá óx, unz varð jötunn;

þar eru órar ættir

komnar allar saman;

því er þat æ allt til atalt."


 "De Élivágar

saltaram gotas de veneno,

e aumentou até que um Jötunn nasceu;

de lá toda nossa tribo

veio a existir,

por isso todos são sempre terríveis." (trad. minha)

 A palavra "eitr" parece significar "liquido corporal" ou "pus" além de "veneno" noutras línguas com cognato germânico (Anglo-saxão âtor, Alto-Alemão Antigo eitar, Dinamarquês ædder, Elfdaliano Sueco "ietter" e no antigo dialeto do Reino Unido "atter"). Na literatura, essa substância é associado a um tipo de liquido divino: tal como o sopro de um dragão. Mas também significa bebida forte ou amarga, tal como vinagre (fermentado), novamente corroborando a ideia de Snorri e sua interpretação de kvikudropar (gotas correntes [fermentadas] de fluido). No Fáfnismál nós podemos ler:

"En er Fáfnir skreið af gullinu, blés hann eitri, ok hraut þat fyrir ofan höfuð Sigurði."

"E quando Fáfnir se afastou do ouro, ele soprou veneno e este caiu na cabeça de Sigurd." (trad. minha)

 No Jovem Fuþark runicamente temos "ár (bom tempo, plenitude), íss (gelo), Týr (deus) e reiðr (cavalgar, movimentar)" que significa: "plenitude de gelo divino em movimento". Ou seja, o poder criativo e gerador estava presente nas águas geladas do caldeirão primitivo de Élivágar. A substância está ligada diretamente ao gelo e talvez ao sal, já que o significado de "veneno" nos faz lembrar de algo que queima, arde ou ferve. Curiosamente o anão que forjou as armas divinas dos deuses Odin (Óðinn) Thor (Þórr) e Freyr se chamava Eitri ("Venenoso", mas também Sindri). Desse modo, o anão com grande poder criador/forjador tinha o mesmo nome que a substância criadora. Só pra esclarecer: na era viking o Antigo Fuþark (de 24 caracteres) já tinha sido substituído pelo Jovem Fuþark (de 16 caracteres) por causa da evolução linguística. A runa ár representava o som de "a" e de "e". Podemos sugerir que a substância era tanto criativa quanto destrutiva.

 Então, porque os gigantes e os deuses, que tinham origem similar, eram diferentes? Ymir nasceu diretamente dessa substância venenosa (eitr) que é descrita como escória (tipo as sobras de metal na forja), enquanto Buri foi libertado por Auðhumbla que lambeu o sal das pedras de gelo (Hon sleikði hrímsteinana, er saltir váru).

 Com isso, podemos entender que mesmo com origem similar (ter origem no gelo), Buri nasceu de um gelo limpo (lambido pela vaca divina) e puro; enquanto Ymir (e Auðhumbla?) nasceu de um gelo sujo e impuro (da substância eitri, mas talvez também por causa da fuligem soprada de Muspell que caia no Ginnungagap).

 Tácito mencionou que o sal era muito importante para duas tribos germânicas que inclusive se enfrentaram para tomar posse de um rio que continha o mineral, que fazia divisa de suas terras e era considerado sagrado e perto do céu. Onde as orações eram melhor atendidas pelas divindades. As tribos em questão eram os Chatti (Catos) e os Hermunduri (Hermonduros) que tinham invocado Mercúrio (Odin) e Marte (Tyr). Os Hermunduri saíram vencedores do conflito. O interessante é que o sal era importante desde os tempos primitivos germânicos até a era viking segundo sua cosmovisão. Veja o trecho:

"No mesmo verão, uma grande batalha foi travada entre os Hermunduri e os Chatti, ambos reivindicando à força um rio que produzia sal em abundância e delimitava seus territórios. Eles não tinham apenas uma paixão por resolver todas as questões pelas armas, mas também uma superstição profundamente enraizada de que tais localidades são especialmente próximas do céu e que as preces mortais não são ouvidas com mais atenção pelos deuses. É, eles pensam, pela generosidade do poder divino, que naquele rio e naquelas florestas o sal é produzido, não, como em outros países, pela secagem de um transbordamento do mar, mas pela combinação de dois elementos opostos, fogo e água, quando este último foi derramado sobre uma pilha de madeira em chamas. A guerra foi um sucesso para os Hermunduri e mais desastrosa para os Chatti porque eles haviam devotado, em caso de vitória, o exército inimigo a Marte e Mercúrio, um voto que consigna cavalos, homens, tudo de fato do lado vencido à destruição." (trad. minha)

 Na Noruega e na Islândia, o sal era obtido principalmente pela queima de algas marinhas. O sal era importante em muitas tradições religiosas do mundo antigo. A descrição de Tácito lembra muito a narração da criação de Snorri.

FONTES:

An Icelandic-English Dictionary, Richard Cleasby & M. A. Gudbrand Vigfusson

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

Etymological Dictionary of Proto-Germanic, Guus Kroonen

The Annals, Tacitus trad. de Alfred John Church e William Jackson Brodribb

The Poetic Edda, Carolyne Larrington

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar (especialmente: https://heimskringla.no/wiki/Gylfaginning)

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i (especialmente: https://heimskringla.no/wiki/Vaf%C3%BEr%C3%BA%C3%B0nism%C3%A1l e https://heimskringla.no/wiki/F%C3%A1fnism%C3%A1l)

https://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.02.0078:book=13:chapter=57&highlight=hermunduri

https://super.abril.com.br/mundo-estranho/por-que-as-vacas-lambem-sal

https://www.tastesofhistory.co.uk/post/a-brief-history-of-foods-salt

https://web.archive.org/web/20140314070618/http://www.cargill.com/salt/about/historyofsalt/religion/     

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Quem foi o primeiro ser a existir? Surtr ou Ymir?

 Olá pessoal, este post será dedicado exclusivamente à Surtr e Ymir. Muito é conhecido da criação da cosmovisão Nórdica, porém, poucos se atentam para algo que é, as vezes, mal interpretado. Afinal, quem veio primeiro? Surtr ou Ymir? Fotos de Internet.
 Vamos por partes: Surtr é o gigante de fogo guardião de Muspelheim (Múspellsheimr) e Ymir é o gigante de gelo. Segundo as fontes que possuímos, o mundo de fogo, Muspelheim, surgiu primeiro e depois surgiu o mundo de gelo, Niflheim (Niflheimr). O mundo de fogo ficava ao sul e o de gelo ao norte.
 Quando Snorri descreveu a criação, ele citou o mundo de fogo como surgido primeiro e, então, ele descreveu o seu guardião, Surtr, com sua espada flamejante. Depois, continuando a narrativa, ele descreveu o surgimento de Ymir.

Ymir, Buri e Audhumbla.

 Mas, o que as fontes falam sobre isso? Vamos ver:
 No Gylfaginning, Gangleri (Gylfi disfarçado) perguntou ao trio Hár, Jafnhár e Thridi (Hárr, Jafnhárr ok Þriði) em Asgard quem era o ser mais velho e eles responderam que era o Alföðr (Odin, Sá heitir Alföðr at váru máli. En í Ásgarði hefir hann tólfi nöfn: Alföðr, Herjann, Nikaðr, Nikuðr, Fjölnir, Óski, Ómi, Riflindi, Sviðurr, Sviðrir, Viðrir, Sálkr). Mas isso tem explicação: depois da morte de Ymir e o dilúvio causado por seu sangue que matou todos os gigantes (exceto Bergelmir e sua esposa), Odin se tornou o ser mais antigo existente (vivo). Odin é o primeiro filho de Borr e Bestla.
 No questionamento de Gangleri, o trio também informou que Ymir é o primeiro ser vivente.
 Nos poemas da Edda Poética, Ymir também é descrito como primeiro ser.
 Na genealogia Norueguesa, Fornjótr aparece como mais antigo ser e seu nome parece significar algo como "Primeiro Gigante", e dele surgiu os clãs dos gigantes marinhos, gigantes das montanhas e gigantes do fogo. Nesta versão, os personagens são evemerizados, ou seja, transformados em seres humanos que foram divinizados. Note que aqui Fornjót é pai dos 3 clãs de gigantes elementais.
 No 1° século da nossa era, Tácito mencionou que os germanos contavam que eram descendentes do deus Tuisto, filho da terra. Tuisto significa algo como "Duplo" ou "Gêmeo" que bate diretamente com o significado de Ymir. Tuisto foi ancestral de 3 seres e Ymir também (um casal saídos do braço esquerdo e um filho monstruoso das pernas). Nas fontes nórdicas, Fornjótr é pai de Hlér ou Ægir, e nos kenningar (metáforas) o oceano, que é Ægir, é chamado de "sangue de Ymir" indicando descendência, o que reforça essa identificação. Alguns estudiosos até aceitam essa identificação (Tuisto/Ymir), embora não seja unânime.
 Então aqui temos 4 fontes de períodos diferentes que colocam Ymir como o ser primordial, o primeiro a surgir (Gylfaginning da Edda em Prosa, Vafþrúðnismál da Edda Poética, Hversu Noregr byggðist, e Germania de Tácito).
 Então, por que Surtr é visto como anterior a Ymir por muitos, inclusive alguns acadêmicos? A resposta pode ser simples: interpretação. Quando Snorri narrava sobre o primeiro mundo de fogo e comentou sobre Surtr, as pessoas entendem que ele deve ter vindo primeiro, ignorando todo o resto. Snorri fez isso apenas pra mencionar o gigante de fogo numa mesma estrofe ao invés de ter que fazer outra, já que ele falava do mundo de fogo. Sacou? 
 Surtr provavelmente é uma figura nativa da religião Escandinava, mas sua imagem lembra muito o anjo com espada de fogo guardião do paraíso da Bíblia (algo já percebido e mencionado por pesquisadores da área). A religião cristã veio do Sul até o Norte e Surtr é relacionado a essa direção. Surtr significa "Negro" de fuligem de fogo e/ou vulcão, porém pode ser uma referência a pessoa de pele escura, o que torna tudo mais misterioso e suspeito. E não acaba por aí, no manuscrito da Edda de Uppsala (um dos 4 manuscritos mais antigos e conhecidos), Surtr é dito estar no palácio Gimlé após o Ragnarok recebendo os justos (Bezt er at vera á Gimlé meðr Surti, ok gott er til drykkjar í Brimlé eða þar sem heitir Sindri. Þar byggja góðir menn). O problema é que no início do Gylfaginning é dito que o Alföðr (Odin) viverá com os justos no Gimlé (Þó allir búa með honum réttsiðaðir þar sem heitir Gimlé). Um escaldo que foi convertido ao cristianismo mencionou que Jesus estará na fonte de Urd (Urðr, após o Ragnarök) que fica no sul, que é a localização de Muspelheim. Será que Surtr é a representação cristã de um anjo ou de Jesus inserido nos mitos com roupagem nórdica? Pessoas do oriente médio possuem pele escura. Surtr é inimigo especialmente de Freyr (cujo nome significa "Senhor") e isso lembra o YHWH de Israel e sua luta contra Baal (que também significa "Senhor") no antigo testamento. Freyr é o mais pacífico dos deuses, gentil, sábio, e querido pelos deuses e homens (mencionado no Lokasenna). A luta de Freyr e Surtr pode simbolizar a luz versus as trevas.

Surtr por John Charles Dollman (1909).

 É claro que isso pode ser uma grande coincidência, mas é interessante. Surtr é inimigo de Freyr e dos deuses, e segundo as Eddas, ele trará o fogo consumidor de mundos, porém no poema Þrymlur (século 15), o gigante de fogo é morto por Thor durante a recuperação do martelo roubado por Thrym (Þrymr). O poema Bergbúa Þáttr também parece confirmar a inimizade entre Thor e Surtr. Vale lembrar que na Edda em Prosa é dito que Thor é o mais poderoso dos seres, não importa quanto um gigante seja poderoso, o deus do trovão sempre irá prevalecer (En þótt svá hafi verit, at nökkurr hlutr hafi svá verit rammr eða sterkr, at Þórr hafi eigi sigr fengit á unnit, þá er eigi skylt at segja frá, fyrir því at mörg dæmi eru til þess ok því eru allir skyldir at trúa, at Þórr er máttkastr).
 Com base (apoiado nas fontes) é seguro dizer que Ymir é o primeiro dos seres, e que Surtr provavelmente descende de Logi/Eldr (o Fogo) ou surgiu de outra forma depois de Ymir.


FONTES:
An Icelandic-English Dictionary, Richard Cleasby & M. A. Gudbrand Vigfusson

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

Myth and Religion of the North: The Religion of Ancient Scandinavia, E. O. G. Turville-Petre

Norse Mythology, a Guide to the Gods, Heroes, Rituals, and Beliefs, John Lindow

Saxo Grammaticus: The History of the Danes, Oliver Elton 

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson
 
The Poetic Edda, Carolyne Larrington

SITES CONSULTADOS:




terça-feira, 4 de abril de 2023

O dilúvio nórdico

 Relatos sobre um dilúvio universal devastador ocorre em praticamente todas as civilizações antigas: Mesopotâmia, Grécia, Índia, Hebreus, etc... A lista de povos é enorme, mas ficarei por aqui pra não sair do foco.

A morte de Ymir (Ýmir) nas mãos dos filhos de Borr, arte de Lorenz Frølich.

 A narrativa do dilúvio nórdico citado brevemente nas duas Eddas (Eddur) é diferente dos demais povos em alguns pontos, o que torna tudo ainda mais interessante, veja:

  • O evento ocorreu antes da criação de Midgard (Miðgarðr, o planeta Terra), enquanto noutras civilizações o cataclismo ocorreu na Terra já formada.
  • O transporte usado pelos sobreviventes no dilúvio nórdico é incerto, enquanto noutras civilizações na maioria das vezes é um barco (mas, também existem variações).
  • Apenas Bergelmir e sua esposa estavam a bordo do objeto que os salvou do dilúvio, pois não existiam animais e homens ainda, enquanto noutras narrativas pelo mundo a maioria das vezes é citado animais e filhos do casal sobrevivente, mas as versões também variam.

 O dilúvio nórdico aconteceu devido o assassinato de Ymir pelas mãos dos filhos de Borr: Odin, Vili e Ve (Óðinn, Vili e ). O sangue jorrado do colossal primeiro ser inundou a região primordial do Ginnungagap, matando todos os gigantes (Hrimþursar), exceto Bergelmir e sua esposa. Bergelmir, era filho de Thrudgelmir (Þrúðgelmir) e neto de Ymir. O Ginnungagap era um local cheio de gelo grosso e espesso, mas com água derretida também, o gelo duro era como solo firme, os seres primordiais viviam neste local. Não há detalhes de como Bergelmir conseguiu se salvar, se ele teve ajuda de algum dos três deuses criadores, ou se foi o pai dele que o alertou, mas Bergelmir é chamado de gigante sábio (inn fróði jötunn) o que evidência que ele era de natureza benigna e diferente dos demais familiares.

 O transporte usado por Bergelmir e sua esposa para sobreviverem também é incerto, pois a palavra para descreve-lo é "lúðr" que pode significar uma "trombeta" ou "caixa [de madeira]" usada em moinho.

 A trombeta de Heimdall (Heimdallr), a Gjallarhorn, possui conexões com a fonte da sabedoria de Mimir (Mímir) onde antes ficava o Ginnungagap. Thor (Þórr) bebeu parte do oceano que saia do enorme chifre de Utgard-Loki (Útgarðr-Loki). Então, o significado de "trombeta" que tem relação com o mar não é impossível aqui e assim o casal pode ter se equilibrado sobre o instrumento como se fosse um navio. Este instrumento escandinavo usado desde da idade do bronze é bem grande em relação ao tamanho de um homem (medem entre 1.5 a 2 metros), então leve na proporção de um gigante. 

Lúðr encontrado na Escânia, Suécia, datado entre 899-700 a.C., foto de internet.

 A caixa [de madeira] pode se referir aos utensílios dos antigos moinhos quando eram cheios de grãos moídos e, desse modo, foi usado como "barco" pelo gigante. A ideia de um caixão/esquife também deve ser mencionada, pois já foi encontrado um ataúde de madeira de carvalho na Dinamarca contendo o corpo da garota de Egtved de 3500 mil anos atrás. Na literatura nórdica as árvores eram vistas como guardiãs e protetoras, pois Lif e Leifthrasir (Líf e Leifþrasir) sobreviverão ao Ragnarök no Bosque do Tesouro de Mimir (Hoddmímis Holt), que é outra denominação da Yggdrasill; Örvar-Oddr usou um tipo de armadura feito de casca de árvore (næframaðr). Então, o significado de "caixa [de madeira]" também é muito possível, e o mais provável também diante do cenário. A caixa boiaria sobre as águas contendo alimento com o casal gigante. 

Ataúde feito de tronco de árvore da garota de Egtved, Dinamarca, datado de 3500 mil anos. Foto de internet.

 O moinho também é associado ao mar como no caso de Grótti, que era do rei Frodi (Fróði). Segundo se conta, as gigantas escravas Fenja e Menja afundaram o navio do rei Mysing (Mýsingr) moendo sal, devido ao peso. Quando a pedra do moinho afundou no mar causou um redemoinho gigante. 

Fenja e Menja em Grótti, arte de Carl Larsson e Gunnar Forssell de 1886.

Moinho nórdico do período de 1400 d.C., o transporte de Bergelmir em questão seria a caixa de madeira logo abaixo da pedra circular. Fonte da imagem: https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/images/b-land-1400-norse-mill-s.jpg 

 Como foi dito acima, é difícil saber o significado correto, até porque este período é anterior a Terra, e não havia madeira, pedra ou metal, porque estes elementos foram fabricados do corpo de Ymir pelos deuses. Contudo, como a região do Ginnungagap é imensamente colossal e Ymir era enorme, é possível que levou algum tempo para as águas chegarem até onde Bergelmir vivia, o que daria tempo para ele fabricar o seu transporte e nesse caso os deuses já teriam criado a Terra do corpo do gigante primordial e o solo brotado vegetais. Isso parece ser o caso aqui, porque os deuses criam coisas com seu poder e vontade quase que instantaneamente. A Völuspá parece corroborar esta ideia, pois o trio criador elevou Midgard (a carne de Ymir) do mar (o sangue de Ymir) e na sequência, então, os raios solares fizeram as plantas brotaram.

 Porém, este não é o único dilúvio nas narrativas nórdicas, pois há menção a mais dois: o dilúvio causado por Jormungand (Jörmungandr) quando ele combaterá Thor, e outro quando tentaram profanar o túmulo de Balder.

 Na Völuspá e na Edda de Snorri é comentado que no Ragnarök a serpente se levantará do oceano espalhando as ondas e cuspindo veneno para todo lado. Assim que o monstro encontrar Thor, eles combaterão, e o deus do trovão vencerá o inimigo antes de cair, então, os homens deixarão seus lares e logo depois a Terra afunda no mar. É um outro dilúvio universal que está por vir no final dos tempos. Isso porque na religião nórdica o universo é cíclico: nasce, se mantém por um tempo, morre, renasce e assim vai.

 Saxo Grammaticus mencionou um episódio diferente sobre a morte de Balder, o filho de Odin. O semideus (nesta versão) morreu depois de enfrentar Hod (Höðr), e foi sepultado. Este túmulo era muito famoso, e os homens de um certo Harald decidiu abri-la em busca de tesouros. Mas, pararam de terror, pois de repente o cume da sepultura se partiu e ressoou poderosamente e uma torrente de água despencou como um dilúvio, enchendo tudo na região instantaneamente. Para salvar suas vidas, os homens fugiram do local. Saxo pareceu não acreditar na narrativa pagã que ele registrou e a descreveu com sua visão cristã, acreditando que era ilusão fantasmagórica conjurada por mágica, mas que não era real. É claro que a enchente aqui é de menor proporção em relação aos outros exemplos, mas não deixa de ser menos importante ou curioso. Este episódio lembra a narrativa de Snorri onde ele comentou que todos os seres choraram por Balder exceto Loki disfarçado. Devo lembrar que esses exemplos de dilúvios também podem ser um eco longínquo de geleiras derretendo que encheram regiões do polo Norte no passado (da última era glacial?) que ficou registrado na memória dos nativos de lá daquele tempo e passados oralmente de geração para geração.

 É notável que nos três dilúvios nórdicos mencionados esta relacionado a morte de divindades: Ymir antes da criação da Terra, Balder no passado já na Terra, e Jormungandr contra Thor no fim dos tempos que ocorrerá segundo as Eddas.


FONTES:

An Icelandic-English Dictionary, Richard Cleasby & M. A. Gudbrand Vigfusson

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes vol. 1, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

The Elder or Poetic Edda Commonly Known as Sæmund's Edda, Olive Bray

The Poetic Edda, Carolyne Larrington

The Prose Edda, Jesse L. Byock

SITES CONSULTADOS:

https://en.natmus.dk/historical-knowledge/denmark/prehistoric-period-until-1050-ad/the-bronze-age/the-egtved-girl/the-egtved-girls-grave/

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/page01.htm

https://septisphere.wordpress.com/2019/01/13/pre-industrial-machines-norse-mill/

A substância criadora "eitr"

 Na cosmogonia nórdica, a substância " eitr " ("veneno") desencadeia um papel importante na criação: o nascimento de Ymi...

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