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sexta-feira, 14 de abril de 2023

O parentesco entre os seres na criação

 Como dito no post anterior, as Nornes (Nornir) governam os destinos porque elas surgiram do sangue de Ymir. Contudo, os seres na criação são todos aparentados de uma forma ou outra.

Os deuses nórdicos na ponte do arco-íris, arte de W. G. Collingwood de 1908: Freyr e Freyja, Njord (Njörðr) e Skadi (Skaði), Tyr (Týr), Thor (Þórr), Balder e Nanna, Odin (Óðinn) e Frigg.

 No início, existiam Ymir (Ýmir) com seus descendentes e a família de Búri, num local antes da existência humana. Quando o trio criador Odin, Vili e Ve (Vili e ) mataram Ymir, eles usaram a carcaça do colossal gigante para criar parte do universo: o céu (himinn) de seu crânio, a Terra (Jörð) de sua carne, os mares (sær) de seu sangue, as montanhas (björg) de seus ossos, as pedras (grjót) de seus dentes, as árvores (baðmr) de seus cabelos, e as nuvens (ský) de seu cérebro.

 Assim que a Terra foi criada, Odin se uniu a ela e gerou o seu primogênito: Thor, que é o mais forte dos deuses, homens e gigantes, porque ele possui o poder e força de seus pais Odin (personificação do céu) e Jord (Terra) combinados. Thor é uma mistura de poder espiritual (através de Odin) e físico (através de Jord), personificado pelo relâmpago, o raio, e o trovão. Os elfos (álfar) e anões (dvergar) surgiram como larvas na carne de Ymir (Ýmis hold que é um termo para Terra) e eles ganharam forma humana e intelecto do trio criador. Os homens (menn) foram criados de duas árvores a beira mar, que foram fabricados a partir dos cabelos de Ymir. Os filhos de Odin possuem mães gigantas como no caso de Vidar (Víðarr) e Vali (Váli). Vidar é filho de Grid (Gríðr) que vive em Jotunheim (Jötunheimr). A região de Jotunheim foi dado aos gigantes depois da criação pelo trio criador. A mãe de Vali, Rind (Rindr), é associada ao leste, que é a direção da região dos gigantes, na obra de Saxo ela foi evemerizada (teoria de que os deuses eram mortais famosos do passado que foram divinizados). Os outros filhos de Odin nasceram depois da criação (já que o Thor é seu primogênito). 

 O mar (sær) é um dos nomes de Ægir na poesia dos escaldos, ele é o senhor do mar, então, provavelmente ele surgiu do sangue de Ymir depois que o gigante foi morto e desmembrado. O próprio Ægir é chamado de "Sangue de Ymir" (Ýmis blóð) no Skáldskaparmál. A genealogia do Hversu Noregr Byggðis parece corroborar esta ideia (embora a obra é evemerizada), pois Hlér que é um dos nomes de Ægir, é filho de Fornjótr, cujo significado deste último pode ser "O Primeiro Gigante". Hlér tinha por irmãos Logi ("Fogo") e Kári ("Vento"). Como Ægir/Sær/Hlér é o mar e nasceu do sangue de Ymir, então, é possível que Logi/Eldr e Kári/Vindr também surgiram da mesma maneira. Provavelmente Logi nasceu do calor corporal interno de Ymir antes de esfriar, e Kári do último suspiro do gigante morto. Ægir é um gigante marinho, Logi um gigante de fogo e Kári um gigante da tempestade. Provavelmente os filhos de Fornjótr deram origem aos demais gigantes elementais após o dilúvio, tal como Bergelmir e sua esposa (no sentido de propagar a espécie).

 Interessante que na Índia existe um relato similar, onde os deuses e componentes do universo surgiram do corpo do gigante morto Purusha. Do umbigo de Purusha veio a atmosfera, de sua cabeça foi feito o Céu (Dyaus), e de seus pés a Terra (Bhumi, outro nome de Prithvi). O hino védico ainda conta mais: a Lua (Chandra) foi feito da mente de Purusha, o Sol (Surya) de seu olho, Indra (Tempestade, raio) e Agni (Fogo) nasceram de sua boca e e o Vento (Vayu) de seu alento. Das partes do corpo de Purusha veio também as classes sociais humanas.

 Como podemos notar, os deuses, os anões, os gigantes, as Nornas, os elfos e até a humanidade, segundo os nórdicos, são todos aparentados, por um lado através do trio criador e por outro lado através de Ymir cujo corpo serviu para outros seres surgirem de uma forma ou de outra. Talvez por isso os escandinavos pagãos respeitavam tanto a natureza. Segundo Tácito, os germânicos não costumavam representar os deuses com feições humanas porque isso era contrário a majestade divina, mas eles consagravam bosques, florestas e riachos aos quais davam nomes divinos. Claro que não podemos generalizar, até porque já foram encontradas imagens de deuses em território germânico e escandinavo. Por isso, Odin é chamado de "Pai de Tudo (Alföðr)", pois a ação deste deus deu início a todas as coisas, claro que com alguma ajuda de seus irmãos.


FONTES:

Gods and Myths of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

Myth and Religion of the North: The Religion of Ancient Scandinavia, E. O. G. Turville-Petre

Myths and Symbols in Pagan Europe: Early Scandinavian and Celtic Religions, Hilda R. E. Davidson

Purusha Sukta, Introdução e tradução para o português por Roberto de A. Martins 

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes Volume I, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Hversu_Noregr_bygg%C3%B0ist

https://sourcebooks.fordham.edu/source/tacitus1.asp

terça-feira, 4 de abril de 2023

O dilúvio nórdico

 Relatos sobre um dilúvio universal devastador ocorre em praticamente todas as civilizações antigas: Mesopotâmia, Grécia, Índia, Hebreus, etc... A lista de povos é enorme, mas ficarei por aqui pra não sair do foco.

A morte de Ymir (Ýmir) nas mãos dos filhos de Borr, arte de Lorenz Frølich.

 A narrativa do dilúvio nórdico citado brevemente nas duas Eddas (Eddur) é diferente dos demais povos em alguns pontos, o que torna tudo ainda mais interessante, veja:

  • O evento ocorreu antes da criação de Midgard (Miðgarðr, o planeta Terra), enquanto noutras civilizações o cataclismo ocorreu na Terra já formada.
  • O transporte usado pelos sobreviventes no dilúvio nórdico é incerto, enquanto noutras civilizações na maioria das vezes é um barco (mas, também existem variações).
  • Apenas Bergelmir e sua esposa estavam a bordo do objeto que os salvou do dilúvio, pois não existiam animais e homens ainda, enquanto noutras narrativas pelo mundo a maioria das vezes é citado animais e filhos do casal sobrevivente, mas as versões também variam.

 O dilúvio nórdico aconteceu devido o assassinato de Ymir pelas mãos dos filhos de Borr: Odin, Vili e Ve (Óðinn, Vili e ). O sangue jorrado do colossal primeiro ser inundou a região primordial do Ginnungagap, matando todos os gigantes (Hrimþursar), exceto Bergelmir e sua esposa. Bergelmir, era filho de Thrudgelmir (Þrúðgelmir) e neto de Ymir. O Ginnungagap era um local cheio de gelo grosso e espesso, mas com água derretida também, o gelo duro era como solo firme, os seres primordiais viviam neste local. Não há detalhes de como Bergelmir conseguiu se salvar, se ele teve ajuda de algum dos três deuses criadores, ou se foi o pai dele que o alertou, mas Bergelmir é chamado de gigante sábio (inn fróði jötunn) o que evidência que ele era de natureza benigna e diferente dos demais familiares.

 O transporte usado por Bergelmir e sua esposa para sobreviverem também é incerto, pois a palavra para descreve-lo é "lúðr" que pode significar uma "trombeta" ou "caixa [de madeira]" usada em moinho.

 A trombeta de Heimdall (Heimdallr), a Gjallarhorn, possui conexões com a fonte da sabedoria de Mimir (Mímir) onde antes ficava o Ginnungagap. Thor (Þórr) bebeu parte do oceano que saia do enorme chifre de Utgard-Loki (Útgarðr-Loki). Então, o significado de "trombeta" que tem relação com o mar não é impossível aqui e assim o casal pode ter se equilibrado sobre o instrumento como se fosse um navio. Este instrumento escandinavo usado desde da idade do bronze é bem grande em relação ao tamanho de um homem (medem entre 1.5 a 2 metros), então leve na proporção de um gigante. 

Lúðr encontrado na Escânia, Suécia, datado entre 899-700 a.C., foto de internet.

 A caixa [de madeira] pode se referir aos utensílios dos antigos moinhos quando eram cheios de grãos moídos e, desse modo, foi usado como "barco" pelo gigante. A ideia de um caixão/esquife também deve ser mencionada, pois já foi encontrado um ataúde de madeira de carvalho na Dinamarca contendo o corpo da garota de Egtved de 3500 mil anos atrás. Na literatura nórdica as árvores eram vistas como guardiãs e protetoras, pois Lif e Leifthrasir (Líf e Leifþrasir) sobreviverão ao Ragnarök no Bosque do Tesouro de Mimir (Hoddmímis Holt), que é outra denominação da Yggdrasill; Örvar-Oddr usou um tipo de armadura feito de casca de árvore (næframaðr). Então, o significado de "caixa [de madeira]" também é muito possível, e o mais provável também diante do cenário. A caixa boiaria sobre as águas contendo alimento com o casal gigante. 

Ataúde feito de tronco de árvore da garota de Egtved, Dinamarca, datado de 3500 mil anos. Foto de internet.

 O moinho também é associado ao mar como no caso de Grótti, que era do rei Frodi (Fróði). Segundo se conta, as gigantas escravas Fenja e Menja afundaram o navio do rei Mysing (Mýsingr) moendo sal, devido ao peso. Quando a pedra do moinho afundou no mar causou um redemoinho gigante. 

Fenja e Menja em Grótti, arte de Carl Larsson e Gunnar Forssell de 1886.

Moinho nórdico do período de 1400 d.C., o transporte de Bergelmir em questão seria a caixa de madeira logo abaixo da pedra circular. Fonte da imagem: https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/images/b-land-1400-norse-mill-s.jpg 

 Como foi dito acima, é difícil saber o significado correto, até porque este período é anterior a Terra, e não havia madeira, pedra ou metal, porque estes elementos foram fabricados do corpo de Ymir pelos deuses. Contudo, como a região do Ginnungagap é imensamente colossal e Ymir era enorme, é possível que levou algum tempo para as águas chegarem até onde Bergelmir vivia, o que daria tempo para ele fabricar o seu transporte e nesse caso os deuses já teriam criado a Terra do corpo do gigante primordial e o solo brotado vegetais. Isso parece ser o caso aqui, porque os deuses criam coisas com seu poder e vontade quase que instantaneamente. A Völuspá parece corroborar esta ideia, pois o trio criador elevou Midgard (a carne de Ymir) do mar (o sangue de Ymir) e na sequência, então, os raios solares fizeram as plantas brotaram.

 Porém, este não é o único dilúvio nas narrativas nórdicas, pois há menção a mais dois: o dilúvio causado por Jormungand (Jörmungandr) quando ele combaterá Thor, e outro quando tentaram profanar o túmulo de Balder.

 Na Völuspá e na Edda de Snorri é comentado que no Ragnarök a serpente se levantará do oceano espalhando as ondas e cuspindo veneno para todo lado. Assim que o monstro encontrar Thor, eles combaterão, e o deus do trovão vencerá o inimigo antes de cair, então, os homens deixarão seus lares e logo depois a Terra afunda no mar. É um outro dilúvio universal que está por vir no final dos tempos. Isso porque na religião nórdica o universo é cíclico: nasce, se mantém por um tempo, morre, renasce e assim vai.

 Saxo Grammaticus mencionou um episódio diferente sobre a morte de Balder, o filho de Odin. O semideus (nesta versão) morreu depois de enfrentar Hod (Höðr), e foi sepultado. Este túmulo era muito famoso, e os homens de um certo Harald decidiu abri-la em busca de tesouros. Mas, pararam de terror, pois de repente o cume da sepultura se partiu e ressoou poderosamente e uma torrente de água despencou como um dilúvio, enchendo tudo na região instantaneamente. Para salvar suas vidas, os homens fugiram do local. Saxo pareceu não acreditar na narrativa pagã que ele registrou e a descreveu com sua visão cristã, acreditando que era ilusão fantasmagórica conjurada por mágica, mas que não era real. É claro que a enchente aqui é de menor proporção em relação aos outros exemplos, mas não deixa de ser menos importante ou curioso. Este episódio lembra a narrativa de Snorri onde ele comentou que todos os seres choraram por Balder exceto Loki disfarçado. Devo lembrar que esses exemplos de dilúvios também podem ser um eco longínquo de geleiras derretendo que encheram regiões do polo Norte no passado (da última era glacial?) que ficou registrado na memória dos nativos de lá daquele tempo e passados oralmente de geração para geração.

 É notável que nos três dilúvios nórdicos mencionados esta relacionado a morte de divindades: Ymir antes da criação da Terra, Balder no passado já na Terra, e Jormungandr contra Thor no fim dos tempos que ocorrerá segundo as Eddas.


FONTES:

An Icelandic-English Dictionary, Richard Cleasby & M. A. Gudbrand Vigfusson

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes vol. 1, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

The Elder or Poetic Edda Commonly Known as Sæmund's Edda, Olive Bray

The Poetic Edda, Carolyne Larrington

The Prose Edda, Jesse L. Byock

SITES CONSULTADOS:

https://en.natmus.dk/historical-knowledge/denmark/prehistoric-period-until-1050-ad/the-bronze-age/the-egtved-girl/the-egtved-girls-grave/

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/page01.htm

https://septisphere.wordpress.com/2019/01/13/pre-industrial-machines-norse-mill/

segunda-feira, 3 de abril de 2023

A origem das Nornes

 As Nornes (Nornir) estão entre as forças mais poderosas da cosmovisão nórdica, senhoras dos destinos dos homens (menn). Elas eram as fiandeiras do destino que moldavam as vidas dos homens. Na Völuspá é dito que elas registravam seu julgamento em placas de madeiras (skáru á skíði, tiradas dos ramos da Yggdrasill?), enquanto no poema Helgakviða Hundisgsbani I é dito que eram em fios de ouro (gullin símu).

As três grandes Nornes: Urd (a mais velha), Verdandi (a matrona) e Skuld (a mais jovem vestida como uma Valquíria) por C. Eherenberg.

 Eram três: Urd (Urðr), Verdandi (Verðandi) e Skuld. A última cavalgava entre as Valquírias (Valkyrjur) para escolher os mortos. Mas, segundo outra fonte, haviam muitas Nornes que pertenciam as raças dos Æsir, dos elfos (álfar) e dos anões (dvergar).

 Porém, a origem das três maiores não é bem clara, embora elas sejam de origem gigante como podemos notar na Völuspá. Vale lembrar que todos os seres são aparentados por laços de sangue através de Ymir (Ýmir) e das dádivas dos trio criador (Óðinn, Vili e ), pois o corpo do gigante foi usado para a criação do universo de onde muitos deuses, homens, anões e outros seres surgiram. E esse parece ser o caso das três Nornes, porque na versão do poema da Völuspá do konungsbók, elas parecem surgir do mar ao lado da raiz de Yggdrasill ("þrjár ór þeim sæ/três saídas do mar"), então, podemos entender que elas "nasceram'' do sangue de Ymir assim que foi morto. A palavra "ór" em nórdico arcaico significa "saído de [algum lugar]" ou "de [origem]". Por isso, elas governam os destinos, porque elas surgiram do primeiro ser desmembrado que deu origem as famílias pelo sangue e poder do trio criador (há uma conexão profunda aqui). A versão do poema da Völuspá do Hausksbók sugere que elas viviam perto da árvore num salão ("þrjár ór þeim sal/três saídas do salão"). Entre as duas versões, a do Konungsbók faz mais sentido (que inclusive é mais antigo dos dois), pois é dito que elas vieram de Jotunheim ("unz þrjár kvámu þursa meyjar, ámáttkar mjök, ór Jötunheimum/até chegarem às três donzelas Þursar, muito poderosas, do Jotunheim"), então elas surgiram do sangue de Ymir transformado em mar que preenchia a região onde vivia os gigantes antes de serem exterminados pelo dilúvio, exceto Bergelmir e sua esposa. O poema Vafþrúðnismál parece confirmar essa ideia, pois é dito que as três filhas de Mogthrasir (Mögþrasir), que provavelmente é uma referência as Nornes aqui, viviam perto de rios e traziam a sorte para o mundo (Þrjár þjóðár falla þorp yfir meyja Mögþrasis; hamingjur einar þær er í heimi eru, þó þær með jötnum alask/Três grandes rios correm sobre a terra das donzelas de Mogthrasir; elas trazem a sorte para o mundo, embora elas fosse criadas pelos gigantes"). As filhas de Mogthrasir são três assim como as Nornes, todas elas viviam perto do mar, elas eram associadas as sortes dos indivíduos e relacionadas aos gigantes. A ideia de deusas surgidos do mar ou algum tipo de liquido divino tem paralela noutras religiões antigas: Afrodite, segundo Hesíodo, surgiu do sangue e sêmen de Urano que caiu no mar; Lakshmi, no hinduísmo, surgiu do oceano de leite quando os Asuras e Devas o agitaram. A ideia de mulheres associadas as águas, as fontes, a sorte, destino e fortuna também se encontra no folclore mundial. Mogthrasir significa "Aquele Que Luta Por Filhos" indicando a capacidade do gigante de gerar muitos filhos, uma característica de Ymir.

 Conclusão: as Nornes nasceram do sangue primordial de Ymir quando o trio criador Odin, Vili e Ve o mataram e por isso elas governam o destino e o nascimento dos seres humanos. Porque a vida nasceu da morte e é para a morte que a vida retorna. Todos os seres humanos repetem o processo de Ymir: nascem, morrem, apodrecem, são devorados por larvas e os nutrientes do cadáver mantém a manutenção da vida, alimentando e dando continuidade a outras criaturas do ciclo da natureza. 


FONTES:

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

Gods and Myths of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

The Poetic Edda, Caroylne Larrington

SITES CONSULTADOS:

https://web.archive.org/web/20090413124631/http://www3.hi.is/~eybjorn/ugm/vsp3.html

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

sábado, 11 de março de 2023

Os Seres Primordiais da Cosmovisão Nórdica - Parte 1

 Bom, nada melhor que começar o primeiro post deste Blog com as divindades primordiais da cosmologia nórdica: Ymir (e seus filhos gigantes), Buri, Borr, Odin e seus irmãos. Muitas coisas são difundidas pela internet sobre a religião e/ou mitologia nórdica, mas também existem erros de interpretação. Incrivelmente uma inverdade pega mais do que a verdade principalmente no mundo de hoje. Eu sempre colocarei os nomes na forma original entre parênteses "()", ou seja, no Nórdico Arcaico, os que estiverem sem é porque não muda na língua nórdica como no caso Bestla ou Vili. Nomes com "?" são de significado incerto. No estágio inicial da criação, se usa o termo "dia" para designar tempo, mas neste período não havia estrelas, nem sol, nem lua para contar a passagem do tempo (a forma que era usada pelos povos germânicos, então, não havia tempo). Era apenas para indicar uma ordem de surgimento.

Ymir se alimentando em Audhumbla que ao mesmo tempo liberta Buri do gelo. Arte de Nicolai Abildgaard.

 Ymir (Ýmir) foi o primeiro ser a existir segundo as duas Eddas (a Poética e a Prosaica, as Eddur), enquanto Saxo Grammaticus parece corroborar essa afirmação quando ele mencionou que os gigantes surgiram primeiro que as divindades. Ymir surgiu quando o calor de Muspellsheim (Múspellsheimr) se encontrou com as camadas de gelo do Niflheim (Niflheimr) no meio do Ginnungagap, fazendo-as derreter. Ymir logo gerou um par de filhos do braço e um filho monstruoso dos pés enquanto dormia e suava. Esse par de filhos nascidos do braço esquerdo são descritos como homem e mulher (maðr ok kona ou mög ok mey dependendo da fonte), enquanto o que nasceu dos pés é um gigante de seis cabeças chamado Thrudgelmir. Ymir, então, simboliza a potência criadora, porém deformado e imperfeito. Ymir foi alimentado pelo segundo ser a surgir na criação: a vaca Audhumbla. Ymir é o pai de todos os gigantes (jötnar), depois ele foi morto pelos três filhos de Borr. Ymir não é o criador na religião nórdica embora seu corpo serviu para a criação do cosmo, mas ele tem paralelos noutras religiões antigas: o gigante Purusha foi desmembrado pelos deuses para dar surgimento ao mundo na Índia (no período Védico); o gigante Pangu surgiu do ovo cósmico de perfeito equilíbrio entre Yin e Yang e ajudou na criação do cosmo, mas depois que morreu várias coisas surgiram do seu corpo. Na Mesopotâmia, Apsu e Tiamat era um par de divindades primordiais que foram mortos pelos deuses mais jovens e seus corpos foram usados para fabricar várias coisas no universo. Ymir, então, tem muito em comum com estas divindades citadas, pois seu nome parece significar "gêmeo" ou "duplo" indicando natureza masculina e feminina num único ser e isso faz sentido, porque ele gerou filhos sem uma consorte. Segundo Tácito, os germânicos do 1º século d.C. acreditavam em Tuisco (ou Tuisto dependendo do manuscrito) o deus surgido da Terra, que era o pai das tribos. Tuisco possui conexão com a antiga palavra sueca tvistra que significa "separado" o que lembra algo que era duplo e foi dividido tal como Ymir. O nome Ymir provavelmente vem do proto-germânico *jumja- que significa "gêmeo". No védico temos Yamá (o primeiro mortal) e no Avesta temos Yima (também um ser mítico) com o mesmo significado: "gêmeo". Se o corpo de Ymir tinha energia masculina e feminina como seu nome sugere, então, tudo na criação possui essa característica, pois sua carcaça serviu para dar forma a toda criação (isso será abordado futuramente). Ymir também é chamado de Aurgelmir ("Rugidor Nascido da Terra/do Barro/do Lodo?", referente ao seu nascimento), Brimir ("Rugido?/Vagalhão?/Oceano?", nome dele já morto se referindo ao sangue jorrado), Bláinn ("Azulado", nome dele já morto, possivelmente indicando podridão do corpo) e possivelmente Fornjótr ("Primeiro Gigante?", este possui muitos possíveis significados, mas ficará para outro post).

 Audhumbla (Auðumbla, Auðhumla ou Auðumla) surgiu logo após Ymir, também do degelo, e ela alimentou o gigante com quatro torrentes de leite saídos de suas tetas. A vaca sagrada se alimentava lambendo o gelo de onde tirava o sal. As quatro torrentes de leite talvez possa simbolizar a própria Via Láctea. No primeiro dia enquanto ela lambia os blocos de gelo, os cabelos de um homem surgiram, no segundo dia toda cabeça e no terceiro dia o corpo inteiro foi libertado do gelo. Audhumbla também simboliza o espírito da mãe natureza, a vaca era muito importante para os povos germânicos, pois era o símbolo de riqueza e ajudava na sobrevivência e manutenção da vida com seu leite. Duas runas são associadas ao gado pelos germânicos: *Fehu ("gado, riqueza") e *Uruz ("Auroque", um boi selvagem extinto). As deusas Gefjon e Nerthus são associadas ao gado (mas isso será abordado noutros posts) e possuem um lado maternal bem acentuado. A deusa da Terra Prithvi dos hindus é associada a vaca. A deusa Hathor tinha cabeça de vaca e Ísis também era associada a esse animal entre os egípcios, a Hera dos gregos também é associada as vacas, e elas são as deusas-mães de seus respectivos panteões. A vaca Gavaevodata do Zoroastrismo (vaca primordial) e Kamadhenu dos hindus (numa versão ela é nascida do oceano de leite) parecem ser contrapartes de Audhumbla em algum grau. O nome de Audhumbla parece significar "Abundante/Rica (de auð-) Vaca Sem Chifres (de humla). Mas, auðr também significa "destino" e "deserto/espaço vazio" e desse modo pode significar "Vaca do Destino" ou "Vaca do Local Deserto/do Espaço Vazio", que é de onde ela surgiu (no meio do Ginnungagap).     

 Buri (Búri) foi o primeiro deus surgido no gelo que foi libertado pela vaca Audhumbla (no texto original temos: "er hon sleikði steinana, kom ór steininum a kveldi manns hár" que traduzido fica: "enquanto ela lambia os blocos, surgiram cabelos de um homem"). Na internet costumam dizerem que Odin é neto da vaca, mas Audhumbla não criou Buri, ela o libertou, como podemos notar pelo texto. Por isso, tome cuidado com o que lê na internet. Buri era belo, alto e poderoso. Ele gerou Bor. Nas fontes não é narrado como Buri gerou Bor, mas é provável que foi tal como Ymir, ou seja, sozinho, por autogênese. Buri também representa o poder criador, porém, mas ordenado, mais natural. Buri significa "Produtor" ou "Pai".  

 Bor (Borr também Burr), então, decidiu se casar com Bestla, filha do gigante Bolthorn (Bölþorn) e eles tiveram três filhos: Odin, Vili e Ve (Óðinn, Vili e ). Praticamente nada se sabe sobre Bor e Bestla, mas a última parece ser irmã de Mimir. O nome do pai de Bestla, Bolthorn, possui relação com outra denominação de Ymir: Thorn, que significa "espinho". Ymir é descrito como maligno (illr) na Edda em Prosa e Bolthorn significa "Espinho Maligno". Bor é da segunda geração divina e faz sentido Bestla ser também da segunda geração de gigantes. Bor significa "Filho" e Bestla pode significar, segundo alguns estudiosos, a "Esposa" (do Frisão Arcaico "bös") ou "Casca de Árvore (do islandês "bast")". Contudo, o significado do nome de Bestla é incerto. Mas, é interessante notar Bestla ter o nome relacionado a algum tipo de árvore, porque Mimir, seu irmão, é o guardião da fonte da sabedoria que está numa das raízes da árvore cósmica Yggdrasill. 

 Mimir (Mímir) é um gigante sábio e amigável que viveu entre os Æsir antes de ser decapitado no Vanir. É muito possível que o par de gigantes nascidos de Ymir sejam Mimir e Bestla, embora seja incerto. O nome Mimir pode estar relacionado com a palavra latina "memor" que significa "memória" e com a islandesa "minni" que significa "lembrança/memória". A palavra gótica "mimz" que significa "mutilado" pode ter alguma relação com ele também já que ele foi mutilado, tendo a cabeça decepada.

 Thrudgelmir (Þrúðgelmir) era o filho de seis cabeças nascido dos pés de Ymir assim que o gigante dormiu e suou. Ele foi pai de Bergelmir. Bergelmir nasceu antes que a Terra (Jörð) fosse criada. Bergelmir tinha família, mas seus nomes não são mencionados nas fontes. Thrudgelmir significa "Aquele Que Ruge Poderosamente" (o que faz sentido já que possui seis cabeças e poderia rugir por elas ao mesmo tempo) e Bergelmir talvez signifique "Aquele Que Ruge da Montanha" (o que também faz sentido porque ele foi um dos poucos sobreviventes ao dilúvio e pode ter chegado em segurança em alguma montanha de gelo, e gigantes habitam nestes lugares e no frio), embora este último seja incerto. O diluvio nórdico ocorreu antes da criação do planeta terrestre e dos homens e foi no local primordial: Ginnungagap.

 Após isso, vários gigantes passaram a surgir. Os gigantes se proliferam com rapidez estupenda gerando ninhadas. Neste período havia apenas os mundos de Muspellsheim e Niflheim e entre eles, no meio, o Ginnungagap. Estes seres primordiais viviam no meio, antes da nossa realidade existir. Estes dois mundos são de planos de existência diferentes e opostos (fogo e calor intenso, gelo e frio intenso), mas se interligam ao mundo físico. Isso também ficará para outro post.

 Nos textos coletados encontrados nas Eddas, as vezes, os deuses e gigantes são chamados de homens, para designar o sexo biológico dos indivíduos, mas em alguns casos eles são evemerizados (evemerismo: teoria de que divindades eram homens mortais divinizados do passado). Na Edda em Prosa, por exemplo, os deuses são identificados com os homens de Tróia. Porém, a palavra Guð/Goð que significa "Deus" no paganismo nórdico é neutra, podendo se referir a um deus ou deusa, após a conversão ela passou a ser masculina. Isso porque essas narrativas míticas foram coletados e compilados por Snorri Sturluson e anônimos que eram cristãos, ao julgar pela período do registro (no século 13 d.C., o último país pagão do Norte da Europa foi a Suécia que se converteu no século 12). Obviamente para alguém da fé monoteísta não fazia sentido registrar as velhas lendas de modo que deveria, pois senão colocaria a nova fé (a cristã) em risco já que a pagã foi erradicada com muito esforço. A igreja censurava e perseguia práticas pagãs, havendo inclusive leis contra costumes antigos. Os povos germânicos passavam sua história oralmente, e poucos eram letrados. A runas que era o alfabeto dos povos germânicos, provavelmente era usado mais pela elite do que pelo povo comum. Mas, as Eddas contém material pré-cristão, contudo devemos ter olhar crítico, pois eles estão impregnados com a visão cristã da época. Não tenho a intensão de denegrir o cristianismo e nem a igreja, apenas contextualizei para vocês poderem entender melhor sobre o assunto em determinada época passada. Para entender uma fé, devemos compreende-la, estuda-las, e mesmo assim é complicado, pois nem sempre uma fonte escrita bate com as práticas religiosas investigadas pela arqueologia, muitas vezes elas são contraditórias.


FONTES:

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

Saxo Grammaticus: The History of the Danes, Oliver Elton 

The Poetic Edda, Carolyne Larrington

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar 

https://sourcebooks.fordham.edu/source/tacitus1.asp

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