segunda-feira, 27 de março de 2023

Os deuses Vanir, seus descendentes e relacionados

 Pouco é contado sobre os deuses Vanir nas antigas fontes escritas em comparação aos Æsir, isso provavelmente por causa do teor sexual e feminino de seus cultos. Quem compilou quase todo o material da cosmovisão nórdica pré-cristã foram pessoas convertidas ao cristianismo e após o período pagão, e eles podem ter suprimido e censurado os contos e/ou práticas do Vanir.

Trio Vanir: Njord (Njörðr), Freyr e Freyja, arte tirada da internet.

 Mas, vamos ao que interessa, provavelmente vocês conhecem o trio mais famoso dos Vanir: Njord e seus filhos Freyr e Freyja que foram enviados aos Æsir como reféns e se tornaram uns dos seus principais deuses, mas existem outros membros dessa família citados nas fontes antigas:

Yngvi era filho de Odin (Óðinn) e pai de Njord, não confunda com o Yngvi-Freyr que é filho deste último, pois são duas divindades distintas. Yngvi é descrito como rei da Turquia (Tyrkjakonungr), mas ele foi evemerizado o que torna difícil de traçar conjecturas (teoria de que deuses antigos eram mortais divinizados). Desse modo, ele aparentemente foi o primeiro Vanir. Segundo se conta, as famílias suecas reais de Uppsala provem dele e de Freyr (seu neto), por isso eles são chamados de Ynglingar

Gullveig foi a causa da guerra Æsir-Vanir, ela foi até Asgard (Ásgarðr), mas foi queimada e espetada por lanças três vezes, mas renasceu. Ao que tudo indica, ela foi tratada assim por causa de suas habilidades com a magia (ela é praticante de seiðr, prática comum entre os Vanir) e também por causa do ouro (ela é associada a corrupção). Alguns pesquisadores identificam Gullveig com Freyja por causa de algumas similaridades: ambas gostam de ouro, ambas são praticantes de seiðr, e ambas são ditas ter ensinado seiðr para o Æsir (é o que a estrofe da Völuspá dá a entender sobre Gullveig). É difícil saber ao certo, mas é provável que Gullveig fosse uma mensageira dos Vanir e não a própria Freyja, porém, Snorri mencionou que a irmã de Freyr chegou a andar por terras distantes com nomes diferentes. Depois que renasceu, Gullveig passou a ser chamada de Heiðr.

As 9 filhas de Njord (Njarðar dœtr níu) são citadas como um grupo de deusas que riscavam runas no poema Sólarljóð, mas apenas dois nomes foram registrados: a mais velha delas é Ráðveig ou Böðveig e a mais nova entre elas é Kreppvör.

Njord e sua irmã (Njarðar ok systur hans) é uma deusa mencionada como companheira de Njord entre os Vanir, mas ele a deixou quando foi levado a Asgard como refém. O nome dela não é recordado nas antigas fontes, mas é possível que ela seja Nerthus, a deusa germânica citada por Tácito no 1º século, devido a similaridade dos nomes Njord-Nerthus (indicando um par tal como Freyr e Freyja), a associação deles com a água e com a carruagem. Na Ynglinga Saga é narrado que entre o Vanir era comum casamento e/ou relações sexuais entre parentes.   

Kvasir aparece como membro do Vanir na Ynglinga Saga, mas na Edda em Prosa ele foi criado pelas duas tribos divinas: Æsir e Vanir, que cuspiram numa vasilha e ele veio a vida. Ele era o mais sábio dos deuses, dotado de grande intelecto e podia responder qualquer coisa. Ele foi morto por anões, que fabricaram o Hidromel dos Poetas. Ele andou pela Terra ensinando sabedoria para os homens antes de ser assassinado.     

Hnoss e Gersemi eram as belíssimas filhas de Óðr e Freyja. Óðr pode ser Óðinn (a etimologia do nome é relatado) ou talvez outro personagem. Óðr deixou Freyja, mas a deusa o procurou pelo mundo.   

Fjölnir era filho de Freyr e Gerd (Gerðr) e ele governou a Suécia. Ele tinha poder sobre as estações e colheitas, que é herança do Vanir. Ele foi evemerizado. Pertence a família Ynglingar, que são descendentes de Freyr ou Yngvi Freyr.

Svegðir filho de Fjölnir e neto de Freyr. Ele foi evemerizado. Pertence a família Ynglingar, que são descendentes de Freyr ou Yngvi Freyr.

Vana era esposa de Svegðir e ela é uma deusa que habitava no Vanaheim. Svegðir foi até a terra do Vanir para se casar com ela.

Vanlandi era filho de Svegðir e Vana. Ele foi evemerizado. Pertence a família Ynglingar, que são descendentes de Freyr ou Yngvi Freyr.

Visbur (Vísburr) era filho de Vanlandi e Drifa. Ele foi evemerizado. Pertence a família Ynglingar, que são descendentes de Freyr ou Yngvi Freyr.

 Depois, outros continuaram a linhagem real e eram associados aos Ynglingar: Dómaldi (filho de Visbur), Dómarr (filho de Dómaldi), Dyggvi (filho de Dómarr), Dagr (filho de Dyggvi), Agni (filho de Dagr), Alrekr e Eiríkr (filhos de Agni), Yngvi e Álfr (filhos de Alrekr), Hugleikr (filho de Álfr), Jörundr (filho filho de Yngvi), Aun (filho de Jörundr), Egill Tunnudólgi (filho de Aun), Óttarr (filho de Egill), Aðils (filho de Óttarr), Eysteinn (filho de Aðils), Yngvarr (filho de Eysteinn), Önundr (filho de Yngvarr), Ingjaldr (filho de Önundr, e o último dos reis suecos Ynglingar, ele foi conquistado pelo rei da Escânia Ivar Vidfamne, mudando assim a linhagem real).  

 As dinastias reais germânicas eram relacionadas a Odin, Freyr e Heimdall (Heimdallr), e seus descendentes possuíam algum poder divino, mas eles são mais ou menos semideuses, no caso dos Ynglingar, eles possuíam poder sobre o bom tempo, estações e colheita. Linhagem real divina era algo comum na antiguidade, pois vários reis e governantes eram considerados filhos ou escolhidos dos deuses. As dinastias reais relacionadas a Odin eram guerreiras, conquistadoras e forjadoras de império, enquanto as dinastias reais relacionadas a Freyr eram voltadas para práticas sexuais, algumas ligadas a homossexualidade e divinação (os descendentes de Freyr praticavam cultos que eram considerados efeminados por um guerreiro que era devoto de Odin). A linhagem real de Freyr também era voltada para abundância e prosperidade. Por isso, eu creio, que os copistas cristãos (que registravam os textos) preferiu não registrar a cultura ligada ao Vanir, salvo alguma coisa aqui e ali, que eram necessárias a contextualização de um determinado tema. O culto Vanir era extremamente feminino onde profetisas (Völur no plural e Völva no singular) saiam pelas cidades com cortejo de mulheres e até homens. Muitas eram temidas e veneradas. Os homens que praticavam magia Vanir (seiðr) eram vistos como efeminados, mas eram temidos.

 Um adendo: não devemos nunca generalizar as coisas: pois Odin aprendeu seiðr com Freyja, e havia guerreiros dedicados ao Vanir que usavam o símbolo do javali como proteção nas batalhas. Com isso, podemos entender que após a guerra Æsir-Vanir, as duas principais tribos divinas trocaram conhecimentos e habilidades, fortalecendo ainda mais seus poderes e entendimentos.

  

FONTES:

A Genealogia dos Deuses Nórdicos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

Gods and Myths of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

Heimskringla: History of the Kings of Norway, Snorri Sturluson trad. Lee M. Hollander

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes Volume I & Volume II, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

http://etext.old.no/Bugge/solar.html

http://www.heimskringla.no/wiki/%C3%8Dslendingab%C3%B3k

http://www.heimskringla.no/wiki/S%C3%B3larlj%C3%B3%C3%B0

https://heimskringla.no/wiki/Ynglinga_saga

https://www.sacred-texts.com/cla/tac/g01040.htm

quinta-feira, 23 de março de 2023

Os nomes dos planetas e astros na língua Nórdica

 Pouco se sabe sobre a astronomia germânica, porque como já falei antes, os povos germânicos passavam quase todos os seus conhecimentos oralmente. Mas, existe alguma coisa aqui e ali, que é um verdadeiro quebra-cabeças.

Deuses dos planetas e da semana: Tyr (Marte), Odin (Mercúrio), Thor (Júpiter), Frey (Saturno), Freyja e/ou Frigg (Vênus). Arte tirada da internet.

 Como vimos no post anterior, os povos germânicos transliteraram os nomes dos dias da semana quando adotaram a semana romana de 7 dias. Porém, irei focar nos escandinavos para o post não ficar muito longo. O domingo foi chamado, então, pelos escandinavos de "dia do Sol" ou Sunnudagr (Søndag em dinamarquês e norueguês, Söndag em sueco). A segunda-feira era o "dia da Lua" ou Mánadagr (Mandag em dinamarquês e norueguês, Måndag no sueco). A terça-feira era o "dia de Tyr" ou Týsdagr (Tirsdag no dinamarquês e norueguês, Tisdag no sueco). A quarta-feira era o "dia de Odin" ou Óðinsdagr (Onsdag em dinamarquês, norueguês e sueco). A quinta-feira era o "dia de Thor" ou Þórsdagr (Torsdag em dinamarquês, norueguês e sueco). A sexta-feira era o "dia de Freyja" ou Frjádagr (Fredag em dinamarquês, norueguês e sueco). O sábado era o "dia do banho" ou Laugardagr (Lørdag em dinamarquês e norueguês, Lördag em sueco). Os 7 dias da semana eram um reflexo dos 5 planetas visíveis a olho nu juntamente com o Sol e Lua. É claro que em cada país nórdico o dialeto mudou um pouco, mas o significado é o mesmo. Porém, a semana islandesa originalmente não começava no domingo, e sim sempre na quinta-feira no verão e sempre na sexta-feira e/ou sábado no inverno. Isso porque as estações eram divididas em duas partes de 6 meses: verão e inverno (a data do começo do inverno na sexta-feira e sábado existe contradições).

 Contudo, os 5 planetas, e a Lua tinham outras denominações, mas que eram uma referência aos deuses nórdicos. Isso foi registrado no manuscrito islandês Rím I do século 12 d.C. por sacerdotes cristãos (essa obra era uma compilação da contagem de tempo, calendário, sinais do zodíaco, que eram usados pela igreja pra determinar a data de suas celebrações). Vale lembrar que esses nomes podem ou não ser pré-cristãos, porque na Islândia os nomes dos deuses nórdicos na semana foram substituídos depois da cristianização e o mesmo pode ter ocorrido com o nome dos planetas. Na Clemens Saga que é datado entre o século 12 ou 13 d.C. podemos ler algo curioso: o planeta Vênus é chamado de Friggjar Stjarna ("Estrela de Frigg"). Voltando ao manuscrito Rím I, a Lua era chamada de Tungl ("Lua"), Marte era chamado Þrekstjarna ("Estrela da Coragem"), Mercúrio era Málsstjarna ("Estrela do Discurso"), Júpiter era Meginstjarna ("Estrela do Poder"), Vênus era Blóðstjarna ("Estrela de Sangue"), e Saturno era Gnógleiksstjarna ("Estrela da Abundância"). O Sol permaneceu com sua denominação comum: Sól ("Sol"). As características dos nomes planetários neste manuscrito islandês batem com os deuses Máni (deus da Lua, pois na Edda Em Prosa "Tungl" aparece como epiteto da Lua), Tyr (deus da coragem), Odin (deus da sabedoria e da escrita/palavra), Thor (deus do poder, pois ele é descrito como dotado de força e poder na Edda em Prosa e, por isso, ele vence todas as criaturas vivas, sua residência Þrúðheimr significa "Mundo do Poder"), Freyja (ou Frigg, deusa das mulheres, do fluxo menstrual, ambas deusas eram associadas ao parto na Edda Poética) e Njord (ou Freyr, deus da abundância). 

 Vênus era associada principalmente com Freyja na Escandinávia, mas ocasionalmente com Frigg também. Isso se deve por causa da confusão entre as duas deusas que possuem diversas similaridades. O nome do planeta Saturno: Gnógleiksstjarna ou "Estrela da Abundância" somado ao sábado que era o "dia do banho" e relacionado ao mesmo planeta parece confirmar sua conexão com Njord (ou Freyr). Njord era o deus dos mares e da abundância, e seu filho Freyr era associado ao mar, pois ele era dono do navio Skíðblaðnir e ele é o deus da abundância também.

 Seguindo a lógica da Clemens Saga é possível que os outros planetas eram assim denominados na era pré-cristã: Týs Stjarna ("Estrela de Tyr", Marte), Óðins Stjarna ("Estrela de Odin", Mercúrio), Þórs Stjarna ("Estrela de Thor", Júpiter), e Njarðar Stjarna ("Estrela de Njord", Saturno) ou Freys Stjarna ("Estrela de Freyr", Saturno). Infelizmente, apenas a "Estrela de Frigg" é mencionado nesta saga, embora incerto, provavelmente era desse jeito que os outros corpos celestes deveriam ser chamados no passado. Corroborando assim com os dias da semana escandinavo que contém o nome dos deuses correspondente aos 5 planetas, Sol e Lua. Porém, a Clemens Saga é uma tradução islandesa do latim da vida de São Clemente I (Papa Clemente I que também é conhecido como Clemente Romano). Desse modo, o nome do planeta Friggjar Stjarna (Vênus) pode apenas ser uma tradução do latim para o islandês, mas a evidência do fato dos dias da semana conter nomes de deuses, então, é muito possível que seja verdadeiro. O Templo de Júpiter era traduzido como Þórshof ('Templo de Thor") nos manuscritos islandeses, e na Escandinávia existem locais com essa denominação, corroborando a ideia, lugares onde o deus do trovão era realmente venerado. Nomes transliterados mantém algum fundo de verdade por assim dizer. 


FONTES:

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Invocando os Deuses Nórdicos: dos tempos primitivos aos tempos modernos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

Gods and Myths of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

Myth and Religion of the North: The Religion of Ancient Scandinavia, E. O. G. Turville-Petre  

The Icelandic Calendar, Svante Janson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar 

http://www.septentrionalia.net/etexts/

https://time-meddler.co.uk/the-old-icelandic-calendar/

domingo, 19 de março de 2023

Folclore Islandês - Dias da Semana

 Os povos germânicos adaptaram e adotaram a semana romana de 7 dias ao redor do 4 século d.C., mas traduziram o nomes das divindades estrangeiras pelas nativas. A tradução foi com base nos poderes e/ou símbolos comum a ambos panteões. Os romanos por sua vez adaptaram dos gregos, os gregos dos babilônicos e os babilônicos dos sumérios.

Caçada Selvagem dos deuses (Åsgårdsreien), arte de Peter Nicolai Arbo de 1868.

 A escolha de 7 dias da semana é referente aos 5 planetas visíveis a olho nu (Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus e Saturno) juntamente com o Sol e Lua (5 + 2 = 7. Na antiguidade os planetas eram reverenciados e cercados de misticismo e folclore. Na Escandinávia o domingo era chamado de o dia do Sol (Sunnudagr), a segunda-feira era o dia da Lua (Mánadagr), a terça-feira era o dia de Tyr (Týsdagr), a quarta-feira era dia de Odin (Óðinsdagr), a quinta-feira era dia de Thor (Þórsdagr), a sexta-feira era dia de Freyja ou Frigg (Frjádagr) e sábado era o dia do banho (Laugardagr).

 Os germânicos substituíram os deuses greco-romanos da semana: o deus Hélios ou Sol (domingo), senhor do astro Solar, pela deusa Sunna ou Sól; Selene ou Luna (segunda-feira), a deusa da Lua, por Máni, o deus da Lua; Ares ou Marte (terça-feira), o deus da guerra e do furor guerreiro, por Ziu/Tiw/Týr; Hermes ou Mercúrio (quarta-feira), deus das artes, magia, intelecto, sabedoria, por Wodan/Woden/Óðinn; Zeus ou Júpiter (quinta-feira), senhor do clima, das tempestades e do raio, por Þonar/Þunor/Þorr; Afrodite ou Vênus (sexta-feira), deusa do amor, beleza e fertilidade, por Freyja (ou Frigg); e Saturno (sábado) ficou sem um correspondente claro, mas foi associado a água ("dia do banho"). Os deuses Njord (Njörðr) e Freyr são identificados com Saturno em manuscritos antigos, pois eles eram deuses da abundância, colheita e ligado ao plantio. Há outras semelhanças: Njord era o chefe do Vanir e foi enviado aos Æsir e Saturno foi expulso do cargo de rei dos deuses e enviado ao Campo dos Afortunados ou no Lácio (dependendo da fonte). Saturno tinha uma foice e Freyr uma espada. Njord era associado as águas, pois vivia perto do mar, sua contraparte germânica, Nerthus, também tinha conexão com a água. É muito possível que o sábado era ligado ao Vanir, que conhecem o futuro, que é o dia que representa a sorte. Assim, temos três Æsir nos dias da semana: Tyr, Odin e Thor; dois Vanir: Freyja e Njord (ou Freyr); e dois seres divinos: Sunna e Máni. A raça de Sunna e Máni são é clara, eles são chamados de filhos de Mundilfari que é referido como um homem (maðr), mas pode ser apenas pra indicar o sexo biológico dele (o mesmo acontece com deuses e gigantes). Contudo, vale lembrar que o Sol e Lua foram criados das fagulhas de Muspellsheim (Múspellsheimr) pelo trio criador, os filhos de Bor (Borr), e que os irmãos Sunna e Máni foram colocados no céu para conduzir esses astros, ou seja, os astros já estavam criados e seus condutores foram colocados depois. É possível que eles sejam elfos, porque a Sól é chamada de "Glória dos Elfos" (Álfröðull). A sexta-feira é relacionado a Freyja na Escandinávia e a Frigg no território inglês.

 O folclore da Islândia coletado em 1866 contava que:

"É dito que quem nasceu domingo, nasceu para vencer! 

 "Numa segunda-feira, para incomodar;

Numa terça-feira, para prosperar;

Numa quarta-feira, para moldar;

Numa quinta-feira, para a glória;

Numa sexta-feira, para a riqueza;

Num sábado, para a sorte." 

Tradução minha. 

 Com base no folclore, é possível que isso venha de longa data, práticas antigas, mesmo quando uma religião é extinta, permanece no imaginário popular. O Sol representa a vitória porque a luz ilumina a escuridão e afasta as trevas que é os obstáculos (a deusa Sól tem esse papel, pois ela transforma Trolls em pedra com sua luz). A Lua muda de fases e simboliza a incerteza, confusão, inconstância e por isso incomoda e causa problemas (o deus Máni é associado aos eclipses, fim de ciclo, mudanças e antigamente a loucura era associado ao corpo celeste). A terça-feira representa a coragem e persistência para superar desafios e assim prosperar por sua determinação (Tyr representa exatamente isso na antiga fé). A quarta-feira simboliza o intelecto para realizar, modelar e moldar os objetivos (Odin é o moldador de destinos, reis, heróis, ele é o senhor das artes). A quinta-feira representa a força para superar obstáculos e com isso ter a glória desejada (Thor é o maior guerreiro de Asgard (Ásgarðr), é o maior dos heróis, e o mais famoso dos deuses e heróis). A sexta-feira simboliza a prosperidade, abundância e riqueza (Freyja é a deusa que possui tesouros e é filha do deus da abundância e riqueza: Njord). O sábado representa o destino e a sorte, mas é como um presente: pode ser benigno como maligno. 


FONTES:

As Casas dos Deuses no Grímnismál e o Zodíaco, Marcio A. Moreira

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Icelandic Legends, collected by Jón Arnason trad. de George E. J. Powell & Eiríkr Magnússon

Invocando os Deuses Nórdicos dos Tempos Primitivos aos Tempos Modernos, Marcio A. Moreira

Scandinavian Mythology, Hilda R.E. Davidson

segunda-feira, 13 de março de 2023

Os Seres Primordiais da Cosmovisão Nórdica - Parte 2

 Neste post vamos continuar falando sobre os deuses primordiais, mas especialmente da trindade criadora: Odin, Vili e Ve (Óðinn, Vili e ), pois merecem um post só para eles.

Odin e seus animais, arte de Carl Emil Doepler de 1882.

 Odin, Vili e Ve são filhos de Bor (Borr/Burr) e Bestla e netos de Buri (Búri), segundo Snorri Sturluson na sua Edda em Prosa. Alguns fragmentos da poesia dos escaldos também confirmam essa genealogia. O trio é da terceira geração divina. Odin é o primeiro da tríade, Vili o segundo e Ve o terceiro. Os três sempre são citados juntos na criação ou viajando juntos, e Vili aparece com o nome de Hœnir e Ve com o nome de Lodur (Lóðurr) no poema Völuspá.

 Odin e seus irmãos mataram Ymir (Ýmir) e usaram o corpo do gigante para criar o céu (do crânio), as nuvens (do cérebro), a Terra (Jörð, da carne), o mar (do sangue), as montanhas (dos ossos), as pedras (dos dentes), as árvores e plantas (dos cabelos) e Midgard (Miðgarðr) de suas sobrancelhas. Praticamente nada se sabe sobre a juventude do trio ou como eles mataram Ymir, mas segundo Eysteinn Björnsson, a trindade parece ter matado o gigante cortando sua garganta. Isso aparece evidenciado através de metáforas da poesia viking no poema Þórsdrápa. Thor (Þórr) tentava atravessar o rio Vimur para ir até o gigante Geirrod (Geirröðr), até sua filha Gjalp (Gjálp) mijar no rio fazendo-o subir, então, o deus ameaçou aumentar seu poder até alcançar o céu caso o rio não diminuísse. O rio em questão é referido como "jorro de sangue do pescoço de Þorn" (snerriblóð svíra Þorns), e como sabemos, os rios e mares foram criados pelo trio de irmãos a partir do sangue de Ymir. E Þorn ("Espinho") é uma denominação de Ymir. Com isso, podemos entender que Ymir foi degolado pelo trio divino de irmãos.

 Odin se tornou o rei dos deuses, e passou a viajar pelo mundo sozinho ou acompanhado de seus irmãos, sempre procurando e testando sua sabedoria. Odin mesmo se gaba de ser o "testador dos Deuses" o que indica que ele sabe os possíveis resultados esperados antes mesmo dos acontecimentos (Vafþrúðnismál: "Muito eu tenho testado, eu testei muito os regin (deuses)"/fjölð ek freistaða, fjölð ek reynda regin). Podemos, então, entender Odin como o profeta, o mensageiro e o professor dos deuses. Odin também é o senhor das charadas e dos enigmas.

 Odin tinha conseguido sua grande sabedoria, clarividência e alta inteligência por vários meios:

1) Ele se apoderou do Hidromel dos Poetas fabricado do sangue de Kvasir que podia dar inspiração e intelecto a quem dele bebesse.

2) Após ter sacrificado um dos olhos na fonte de Mimir, Odin se tornou mais sábio e foi capaz de entender coisas ocultas e além.

3) Ele se auto sacrificou em Yggdrasil se oferecendo a si mesmo, com isso foi capaz de entender os segredos das runas.

4) Ele possuía o alto trono em Asgard (Ásgarðr) chamado Hliðskjalf (Hliðskjálf) de onde ele podia enxergar todos os mundos.

 Odin ainda contava com os bons conselhos da sua esposa Frigg e as noticias trazidas pelos seus corvos Hugin e Munin (Huginn e Muninn). O nome "Odin" significa "Frenesi/Fúria", no sentido de estar possuído, inspirado, em êxtase, em transe. Dessa forma, Odin é a força motora que move todas as coisas, dá impulso, agitação. Num sentido mais amplo, ele desenvolve a espiritualidade e o intelecto interna dos seres. Na antiguidade xamãs e também sacerdotes entravam em transe para se comunicar com o divino.

 Sobre Vili e Ve quase nada se sabe, mas eles assumiram Asgard por um tempo e cuidaram de Frigg, quando Odin se ausentou do trono por um longo período. Quando Odin retornou eles devolveram tudo ao irmão. Eles ajudaram o irmão mais velho na criação do mundo e dos homens como já foi dito. Vili significa "Desejo" e Ve significa "Sagrado".

 Vili como Hœnir já possuí mais informações: ele era calado, neutro e foi enviado ao Vanir junto com Mimir depois que os deuses fizeram as pazes após longas guerras e trocaram reféns. Ao que parece ele foi devolvido junto com a cabeça de Mimir (que foi decapitado), porque ele aparece como companheiro de viagem de Odin em algumas aventuras. Hœnir possuí o significado do nome incerto, mas geralmente é associado a aves como galo (do islandês hæns), cisne (com relação a balada das ilhas Faroé onde este deus é associado a esta ave, do grego arcaico κύκνος "cisne", e do sânscrito शोचति "brilho") e cegonha (justamente porque na balada das ilhas Faroé este deus colocou uma criança num local de penas de cisne, e possivelmente relacionado a tradição dos bebês serem entregues por cegonhas). Odin é acompanhado de corvos e um de seus nomes é "Hrafnáss" que significa "Deus dos Corvos", então, faz sentido Hœnir ser associado aos cisnes ou cegonhas O corvo é associado a morte e o cisne e/ou a cegonha com a vida.

 Ve como Lodur também possuí mais informações, porém complexas. Lodur é identificado com Loki em duas obras tardias Lokrur e Þrymlur, datadas do século 14 e 15 respectivamente (mas, de material provavelmente mais antigo já que no Norte era costume passar as coisas oralmente e desse modo pode ter sido registrado nesse período). Lodur, então, é visto como outro nome de Loki. Lodur aparece como companheiro de viagem de Odin e Hœnir, e Loki também. Aqui temos algo interessante: Lodur ajudou na criação dos homens, então em algum momento ele se corrompeu, e já assumindo o nome Loki passou a tentar a destruir o que ajudou a criar. Loki é dito ter comido o coração de uma giganta parcialmente assado e isso mudou seu temperamento. Os gigantes são destrutivos e caóticos (embora nem todos). Mas, não para por ai, Lodur/Ve é filho de Bor e Bestla, enquanto Loki é descrito como filho de Farbauti (Fárbauti) e Laufey. Loki é dito ter feito pacto de sangue com Odin no início dos tempos, então, o significado do nome Ve, ou seja, "Sagrado" pode ser uma alusão a isso, pois pactos e juramentos era algo sagrado e levado muito a sério pelos povos germânicos. Podemos deduzir que no momento que Loki comeu o coração da giganta, ele passou a ser visto como filho de gigantes (a família da giganta passou a ser seus pais?), o que deu origem a sua dupla genealogia. Pra complicar Odin possuí o nome "Tveggi" que significa "Gêmeo/Duplo", o que parece confirmar que ele e Vili/Hœnir eram irmãos, deixando Lodur/Loki de fora, ou talvez, no momento de sua queda, seus irmãos o renegaram na família, mas o manteriam por perto por causa do juramento sagrado (Ve). Lodur e Loki são de significado incerto e possui múltiplas possíveis interpretações.

 Algo interessante merece ser mencionado: Odin deu a vida e o espírito ao primeiro par humano, Ask e Embla, Vili/Hœnir deu o entendimento e o poder de se mover, e Ve/Lodur/Loki deu o sangue, os sentidos e a aparência. Desse modo, o espírito é divino e a mais alta consciência e ligado ao criador, o entendimento é nosso ego individual, enquanto o corpo é mortal e instintivo. Claramente simbolizando o que o humano pode escolher com seu ego (dom de Hœnir) entre a espiritualidade (dom de Odin) ou instintos primitivos (dom de Loki). Além disso, Loki passou a tentar a destruir a criação, sabotando os deuses sempre que podia. Assim: Odin cria, Hœnir preserva se mantendo neutro e Loki destrói. Então, podemos ver que o lado maléfico dos homens está ligado diretamente ao dom de Lodur/Loki que age por instinto, sem pensar nas consequências do ato tal como a própria divindade. Lembrando que na cosmovisão Nórdica não existe Satã (a ideia de um mal absoluto), porque toda a criação é uma mistura de energias positivas e negativas. Na ordem (os deuses) existe o caos (Loki) e no caos (gigantes) existe a ordem (Thor), com isso é mantido o equilíbrio. Na cosmovisão Nórdica tudo é tríade: vida, morte e renascimento; criação, preservação e destruição; passado, presente e futuro (personificado em: Urðr, Verðandi e Skuld); noite, dia e amanhecer (personificado em: Nótt, Dagr e Dellingr); céu, terra e mundo dos mortos (cada esfera é dividida em 3, ou seja, 3 x 3 = 9 mundos); as três raízes de Yggdrasill, os deuses são regidos por Odin, Thor e Freyr; as classes sociais eram 3 (Jarl, Karl e Þrall); etc.

 Há um ditado viking que diz que: "tudo acontece em três" (Grettis Saga: at þrisvar hefir all orðit forðum), por mais que o número 3 seja sagrado, ele é carregado de energia negativa, pois nas runas simboliza "Þ" (*Þurisaz/Þorn/Þurs) que representa os gigantes em geral. O três é finalização. Mas, num nome divino ou mortal, o "Þ" depende da combinação, pois nem sempre é negativo (isso ficará para um post futuro).

 

FONTES:

A Genealogia dos Deuses Nórdicos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

Lokrur, Lóðurr and late evidence, Haukur Þorgeirsson

The Poetic  Edda, Lee M. Hollander

SITES:

https://sagadb.org/grettis_saga.is

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar 

https://heimskringla.no/wiki/Lokka_t%C3%A1ttur

https://heimskringla.no/wiki/Lokrur_I-IV

https://heimskringla.no/wiki/%C3%9Erymlur

https://heimskringla.no/wiki/Ynglinga_saga  

https://web.archive.org/web/20151228024633/https://notendur.hi.is/eybjorn/ugm/thorsd00.html  

sábado, 11 de março de 2023

Os Seres Primordiais da Cosmovisão Nórdica - Parte 1

 Bom, nada melhor que começar o primeiro post deste Blog com as divindades primordiais da cosmologia nórdica: Ymir (e seus filhos gigantes), Buri, Borr, Odin e seus irmãos. Muitas coisas são difundidas pela internet sobre a religião e/ou mitologia nórdica, mas também existem erros de interpretação. Incrivelmente uma inverdade pega mais do que a verdade principalmente no mundo de hoje. Eu sempre colocarei os nomes na forma original entre parênteses "()", ou seja, no Nórdico Arcaico, os que estiverem sem é porque não muda na língua nórdica como no caso Bestla ou Vili. Nomes com "?" são de significado incerto. No estágio inicial da criação, se usa o termo "dia" para designar tempo, mas neste período não havia estrelas, nem sol, nem lua para contar a passagem do tempo (a forma que era usada pelos povos germânicos, então, não havia tempo). Era apenas para indicar uma ordem de surgimento.

Ymir se alimentando em Audhumbla que ao mesmo tempo liberta Buri do gelo. Arte de Nicolai Abildgaard.

 Ymir (Ýmir) foi o primeiro ser a existir segundo as duas Eddas (a Poética e a Prosaica, as Eddur), enquanto Saxo Grammaticus parece corroborar essa afirmação quando ele mencionou que os gigantes surgiram primeiro que as divindades. Ymir surgiu quando o calor de Muspellsheim (Múspellsheimr) se encontrou com as camadas de gelo do Niflheim (Niflheimr) no meio do Ginnungagap, fazendo-as derreter. Ymir logo gerou um par de filhos do braço e um filho monstruoso dos pés enquanto dormia e suava. Esse par de filhos nascidos do braço esquerdo são descritos como homem e mulher (maðr ok kona ou mög ok mey dependendo da fonte), enquanto o que nasceu dos pés é um gigante de seis cabeças chamado Thrudgelmir. Ymir, então, simboliza a potência criadora, porém deformado e imperfeito. Ymir foi alimentado pelo segundo ser a surgir na criação: a vaca Audhumbla. Ymir é o pai de todos os gigantes (jötnar), depois ele foi morto pelos três filhos de Borr. Ymir não é o criador na religião nórdica embora seu corpo serviu para a criação do cosmo, mas ele tem paralelos noutras religiões antigas: o gigante Purusha foi desmembrado pelos deuses para dar surgimento ao mundo na Índia (no período Védico); o gigante Pangu surgiu do ovo cósmico de perfeito equilíbrio entre Yin e Yang e ajudou na criação do cosmo, mas depois que morreu várias coisas surgiram do seu corpo. Na Mesopotâmia, Apsu e Tiamat era um par de divindades primordiais que foram mortos pelos deuses mais jovens e seus corpos foram usados para fabricar várias coisas no universo. Ymir, então, tem muito em comum com estas divindades citadas, pois seu nome parece significar "gêmeo" ou "duplo" indicando natureza masculina e feminina num único ser e isso faz sentido, porque ele gerou filhos sem uma consorte. Segundo Tácito, os germânicos do 1º século d.C. acreditavam em Tuisco (ou Tuisto dependendo do manuscrito) o deus surgido da Terra, que era o pai das tribos. Tuisco possui conexão com a antiga palavra sueca tvistra que significa "separado" o que lembra algo que era duplo e foi dividido tal como Ymir. O nome Ymir provavelmente vem do proto-germânico *jumja- que significa "gêmeo". No védico temos Yamá (o primeiro mortal) e no Avesta temos Yima (também um ser mítico) com o mesmo significado: "gêmeo". Se o corpo de Ymir tinha energia masculina e feminina como seu nome sugere, então, tudo na criação possui essa característica, pois sua carcaça serviu para dar forma a toda criação (isso será abordado futuramente). Ymir também é chamado de Aurgelmir ("Rugidor Nascido da Terra/do Barro/do Lodo?", referente ao seu nascimento), Brimir ("Rugido?/Vagalhão?/Oceano?", nome dele já morto se referindo ao sangue jorrado), Bláinn ("Azulado", nome dele já morto, possivelmente indicando podridão do corpo) e possivelmente Fornjótr ("Primeiro Gigante?", este possui muitos possíveis significados, mas ficará para outro post).

 Audhumbla (Auðumbla, Auðhumla ou Auðumla) surgiu logo após Ymir, também do degelo, e ela alimentou o gigante com quatro torrentes de leite saídos de suas tetas. A vaca sagrada se alimentava lambendo o gelo de onde tirava o sal. As quatro torrentes de leite talvez possa simbolizar a própria Via Láctea. No primeiro dia enquanto ela lambia os blocos de gelo, os cabelos de um homem surgiram, no segundo dia toda cabeça e no terceiro dia o corpo inteiro foi libertado do gelo. Audhumbla também simboliza o espírito da mãe natureza, a vaca era muito importante para os povos germânicos, pois era o símbolo de riqueza e ajudava na sobrevivência e manutenção da vida com seu leite. Duas runas são associadas ao gado pelos germânicos: *Fehu ("gado, riqueza") e *Uruz ("Auroque", um boi selvagem extinto). As deusas Gefjon e Nerthus são associadas ao gado (mas isso será abordado noutros posts) e possuem um lado maternal bem acentuado. A deusa da Terra Prithvi dos hindus é associada a vaca. A deusa Hathor tinha cabeça de vaca e Ísis também era associada a esse animal entre os egípcios, a Hera dos gregos também é associada as vacas, e elas são as deusas-mães de seus respectivos panteões. A vaca Gavaevodata do Zoroastrismo (vaca primordial) e Kamadhenu dos hindus (numa versão ela é nascida do oceano de leite) parecem ser contrapartes de Audhumbla em algum grau. O nome de Audhumbla parece significar "Abundante/Rica (de auð-) Vaca Sem Chifres (de humla). Mas, auðr também significa "destino" e "deserto/espaço vazio" e desse modo pode significar "Vaca do Destino" ou "Vaca do Local Deserto/do Espaço Vazio", que é de onde ela surgiu (no meio do Ginnungagap).     

 Buri (Búri) foi o primeiro deus surgido no gelo que foi libertado pela vaca Audhumbla (no texto original temos: "er hon sleikði steinana, kom ór steininum a kveldi manns hár" que traduzido fica: "enquanto ela lambia os blocos, surgiram cabelos de um homem"). Na internet costumam dizerem que Odin é neto da vaca, mas Audhumbla não criou Buri, ela o libertou, como podemos notar pelo texto. Por isso, tome cuidado com o que lê na internet. Buri era belo, alto e poderoso. Ele gerou Bor. Nas fontes não é narrado como Buri gerou Bor, mas é provável que foi tal como Ymir, ou seja, sozinho, por autogênese. Buri também representa o poder criador, porém, mas ordenado, mais natural. Buri significa "Produtor" ou "Pai".  

 Bor (Borr também Burr), então, decidiu se casar com Bestla, filha do gigante Bolthorn (Bölþorn) e eles tiveram três filhos: Odin, Vili e Ve (Óðinn, Vili e ). Praticamente nada se sabe sobre Bor e Bestla, mas a última parece ser irmã de Mimir. O nome do pai de Bestla, Bolthorn, possui relação com outra denominação de Ymir: Thorn, que significa "espinho". Ymir é descrito como maligno (illr) na Edda em Prosa e Bolthorn significa "Espinho Maligno". Bor é da segunda geração divina e faz sentido Bestla ser também da segunda geração de gigantes. Bor significa "Filho" e Bestla pode significar, segundo alguns estudiosos, a "Esposa" (do Frisão Arcaico "bös") ou "Casca de Árvore (do islandês "bast")". Contudo, o significado do nome de Bestla é incerto. Mas, é interessante notar Bestla ter o nome relacionado a algum tipo de árvore, porque Mimir, seu irmão, é o guardião da fonte da sabedoria que está numa das raízes da árvore cósmica Yggdrasill. 

 Mimir (Mímir) é um gigante sábio e amigável que viveu entre os Æsir antes de ser decapitado no Vanir. É muito possível que o par de gigantes nascidos de Ymir sejam Mimir e Bestla, embora seja incerto. O nome Mimir pode estar relacionado com a palavra latina "memor" que significa "memória" e com a islandesa "minni" que significa "lembrança/memória". A palavra gótica "mimz" que significa "mutilado" pode ter alguma relação com ele também já que ele foi mutilado, tendo a cabeça decepada.

 Thrudgelmir (Þrúðgelmir) era o filho de seis cabeças nascido dos pés de Ymir assim que o gigante dormiu e suou. Ele foi pai de Bergelmir. Bergelmir nasceu antes que a Terra (Jörð) fosse criada. Bergelmir tinha família, mas seus nomes não são mencionados nas fontes. Thrudgelmir significa "Aquele Que Ruge Poderosamente" (o que faz sentido já que possui seis cabeças e poderia rugir por elas ao mesmo tempo) e Bergelmir talvez signifique "Aquele Que Ruge da Montanha" (o que também faz sentido porque ele foi um dos poucos sobreviventes ao dilúvio e pode ter chegado em segurança em alguma montanha de gelo, e gigantes habitam nestes lugares e no frio), embora este último seja incerto. O diluvio nórdico ocorreu antes da criação do planeta terrestre e dos homens e foi no local primordial: Ginnungagap.

 Após isso, vários gigantes passaram a surgir. Os gigantes se proliferam com rapidez estupenda gerando ninhadas. Neste período havia apenas os mundos de Muspellsheim e Niflheim e entre eles, no meio, o Ginnungagap. Estes seres primordiais viviam no meio, antes da nossa realidade existir. Estes dois mundos são de planos de existência diferentes e opostos (fogo e calor intenso, gelo e frio intenso), mas se interligam ao mundo físico. Isso também ficará para outro post.

 Nos textos coletados encontrados nas Eddas, as vezes, os deuses e gigantes são chamados de homens, para designar o sexo biológico dos indivíduos, mas em alguns casos eles são evemerizados (evemerismo: teoria de que divindades eram homens mortais divinizados do passado). Na Edda em Prosa, por exemplo, os deuses são identificados com os homens de Tróia. Porém, a palavra Guð/Goð que significa "Deus" no paganismo nórdico é neutra, podendo se referir a um deus ou deusa, após a conversão ela passou a ser masculina. Isso porque essas narrativas míticas foram coletados e compilados por Snorri Sturluson e anônimos que eram cristãos, ao julgar pela período do registro (no século 13 d.C., o último país pagão do Norte da Europa foi a Suécia que se converteu no século 12). Obviamente para alguém da fé monoteísta não fazia sentido registrar as velhas lendas de modo que deveria, pois senão colocaria a nova fé (a cristã) em risco já que a pagã foi erradicada com muito esforço. A igreja censurava e perseguia práticas pagãs, havendo inclusive leis contra costumes antigos. Os povos germânicos passavam sua história oralmente, e poucos eram letrados. A runas que era o alfabeto dos povos germânicos, provavelmente era usado mais pela elite do que pelo povo comum. Mas, as Eddas contém material pré-cristão, contudo devemos ter olhar crítico, pois eles estão impregnados com a visão cristã da época. Não tenho a intensão de denegrir o cristianismo e nem a igreja, apenas contextualizei para vocês poderem entender melhor sobre o assunto em determinada época passada. Para entender uma fé, devemos compreende-la, estuda-las, e mesmo assim é complicado, pois nem sempre uma fonte escrita bate com as práticas religiosas investigadas pela arqueologia, muitas vezes elas são contraditórias.


FONTES:

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

Saxo Grammaticus: The History of the Danes, Oliver Elton 

The Poetic Edda, Carolyne Larrington

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar 

https://sourcebooks.fordham.edu/source/tacitus1.asp

sexta-feira, 10 de março de 2023

Apresentação do Blog

 Olá a todos e sejam muito bem vindos, eu sou o Marcio (Vitki Þórsgoði) de Caçapava/SP! Este Blog será destinado a disseminar o conhecimento dos deuses nórdicos, práticas, visão de mundo, runas e tudo relacionado ao mundo pré-cristão germano-escandinavo.

Arte descrevendo um templo encontrado na Noruega, tirado da internet.

 Eu sou heiðinn ("pagão") desde 2001 e sigo o forn siðr ("os velhos costumes" do Norte da Europa) desde então. Desde menino eu gosto do Thor e da cultura escandinava e em 1991 comecei a me aprofundar sobre o tema. Meu contato com as runas se deu depois desta época, onde eu comecei a estudar e a perceber que este era o meu caminho. Lembro-me do primeiro dia que tentei ler as runas e na mesma noite durante o sono, eu estava com um dos olhos colado e não abria por mais que tentasse força-lo. 

 Então, tudo fez sentido, quando lembrei que o poderoso Alföðr Odin havia sacrificado o olho em busca do conhecimento. E assim minha jornada começou!

 Espero que gostem do Blog porque ele será dedicado a vocês que praticam a fé nórdica ou para aqueles que curtem a mitologia nórdica!  Os tópicos, as vezes, passará por correções (afinal também erro e não sou infalível) e dependendo, mais informações podem ou não ser acrescentadas.

 Mas, lembrem-se, intolerância religiosa é crime:

 O Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940), em seu artigo 208, estabelece que é crime “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. 

 A pena prevê de 2 a 5 anos de prisão!

A origem da Yggdrasill

 Este post será dedicado a árvore cósmica Yggdrasill, o centro da cosmologia nórdica. Apesar de grande importância dentro do paganismo nórdi...

Mais Vistos