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quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Thor matou Jormungand antes do Ragnarok?

 A luta cósmica entre a ordem e o caos aparece em todas as religiões antigas, e era representado pelo combate feroz entre o deus do céu que empunha o raio contra a serpente das profundezas que é o antigo dragão. É um tema recorrente: na Grécia temos Zeus contra Tifão, na Babilônia era Marduk contra Tiamat, na Índia temos Indra contra Vrtra, os Hurritas contavam de Teshub versus Illuyanka, os Eslavos narravam sobre a batalha entre Perun e Veles. Mas, há muitos outros exemplos deste épico confronto, e na Escandinávia era representado por Thor (Þórr) contra Jormungand (Jörmungandr) ou Serpente Midgard (Miðgarðsormr).

 Nos exemplos citados acima quase sempre o deus do céu mata a serpente e manda o inimigo vencido para o submundo (ou Terra da Morte). Tá, mas e no Norte? No Norte existe duas versões como veremos a seguir.

 Nas Eddas (Eddur), Thor enfrentou a serpente Jormungand três vezes:

  1. Quando o Thor tentou levantar o gato de Utgard-Loki (Útgarðr-Loki) que na verdade era Jormungand disfarçada.
  2. Quando o Thor foi pescar a serpente com Hymir, depois do encontro com o monstro no salão de Utgard-Loki.
  3. Quando o Thor e a serpente irão se enfrentar novamente no fim dos tempos.

 Segundo o Gylfaginning, o primeiro encontro entre o deus e a serpente ocorreu quando Thor foi visitar os gigantes, e acabou sendo enganado em desafios ocultados por magia. Utgard-Loki desafiou Thor a levantar seu gato do chão, mas era Jormungand. Thor conseguiu levantar uma de suas patas do chão, fazendo a serpente se contorcer a tal modo que mal conseguiu rodear as Terras. Depois, quando estava para partir da cidadela dos gigantes, Thor ficou sabendo do ocorrido e de seu feito, então, ele decidiu matar o monstro.

 O segundo encontro ocorreu após isso, o deus foi até Hymir disfarçado de jovem (ele tem poder de mudar de forma) querendo ir pescar com o gigante. Os dois foram até o oceano e Thor fisgou a serpente. Aqui o relato é divergente: uma versão (a do Gylfaginning, a do escaldo Bragi Boddason, a estela de Gosforth e a estela de Hørdum Ty) conta que Hymir cortou a corda de Thor, noutra versão (a Hymiskviða, a estela Ardre VIII e a pedra rúnica de Altuna) não existe a intervenção de Hymir. Ambas versões são obscuras e ambíguas, pois elas não clarificam de forma precisa se o deus matou a serpente.

 No terceiro encontro registrado na Völuspá e Gylfaginning, o deus e a serpente se matarão, mas Thor finalizará o inimigo primeiro, saindo vitorioso. Porém, ele dará nove passos e cairá também.

 Como foi falado antes no post anterior, o prólogo da Edda em Prosa mencionou que Thor matou o maior dos dragões que deve ser Jormungand (einn inn mesta dreka), depois o deus se casou com Sif. No Hymiskviða é dito que Thor golpeou a cabeça da serpente violentamente (hamri kníði háfjall skarar). O escaldo Gamli vai além e disse que Thor matou a serpente com o golpe do martelo na cabeça do monstro (grundar fisk með grandi gljúfrskeljungs nam rjúfa). Gamli viveu no século 10 d.C., mas embora os fragmentos de sua poesia não clarifica se o monstro foi morto antes ou durante o Ragnarok, os kenningar (metáforas da poesia viking) parecem indicar que ocorreu durante a pescaria ao julgar pelos indicativos: grundar fiskr ou "peixe da Terra" (Jormungandr no oceano), e grand gljúfrskeljungs ou "destruidor de baleia do desfiladeiro (o martelo de Thor que destrói monstros e usado aqui para se referir a gigantes)" que são referências associados ao mar, no caso a pesca. Hymir pescou baleias na versão do Hymiskviða, corroborando a metáfora do martelo de Thor ("destruidor de baleia do desfiladeiro") como sendo durante a pesca. O escaldo Úlfr Uggason é explícito: ele narrou um salão onde ele estava que tinha imagens entalhados da vitória de Thor sobre a serpente, Thor arrancava a cabeça do monstro abaixo das ondas (Víðgymnir laust Vimrar vaðs af fránum naðri hlusta grunn við hrönnum). Úlfr também viveu no século 10 d.C. e a sua poesia é referente a pesca (hrönnum é uma metáfora para o mar, pois no Ragnarök a batalha acontecerá no campo Vigríðr na terra dos Æsir). Com a intervenção ou não de Hymir, na versão de Gamli e Úlfr, Thor matou a serpente com seu martelo. Curiosamente, no Hymiskviða, Thor é denominado de "O Único Matador da Serpente (Orms Einbani)" indicando uma possível destruição do monstro no poema. A serpente era colossal (um alvo muito grande) e o martelo de Thor não erra o alvo, então, mesmo no caso do corte da linha de pesca por Hymir, o deus atirou a arma no monstro e acertou na cabeça.

Pagina original do manuscrito GKS 2365 4º (também conhecido como Codex Regius ou Konungsbók que significa "Livro do Rei") datado de aproximadamente 1270 d.C.. Na foto destaquei em vermelho o texto onde Thor é chamado de "Orms Einbani" ou "O Único Matador da Serpente". Pouco abaixo há um espaço vazio no texto (logo após o ataque de Thor na serpente), embora não indique lacuna, é muito provável que parte do texto está faltando. 

 No Gylfaginning também é comentado por Snorri que os homens pagãos diziam que Thor havia matado a serpente antes do Ragnarök e durante a pesca, arrancando-lhe a cabeça com uma martelada, mas que ele achava que o monstro sobreviveu para poder morrer junto com o deus no final dos tempos (En Þórr kastaði hamrinum eftir honum, ok segja menn, at hann lysti af honum höfuðit við hrönnunum, en ek hygg hitt vera þér satt at segja, at Miðgarðsormr lifir enn ok liggr í umsjá). Os escaldos Gamli e Úlfr Uggason corroboram com está versão onde Thor matou a serpente durante a pesca (citações registradas no Skáldskaparmál). Ou essa batalha cósmica entre o deus do trovão vs. a serpente tinha duas versões ou a versão original é onde o filho da Terra triunfava e saia ileso da pescaria que terminava com a morte do monstro, enquanto a versão da Völuspá e Gylfaginning seria rearranjado depois do contato com o cristianismo (por influência cristã) ou mesmo adulterado. Na bíblia, no apocalipse, Deus derrotará o dragão e o lançara no abismo, provavelmente esta versão influenciou os escandinavos pagãos de fé mista (que acreditavam em deuses e na trindade cristã ao mesmo tempo, algo citado nas sagas) que tiveram contato com o cristianismo nas ilhas britânicas durante o período da era Viking. Gerando uma cosmovisão dessa batalha mista, hibrida, com elementos pagãos e cristãos. O poema Lokasenna parece confirmar que a serpente estava morta durante o Ragnarök, pois Loki provocou Thor dizendo que ele não estará tão corajoso quando for enfrentar o lobo no fim dos tempos (Jarðar burr er hér nú inn kominn, hví þrasir þú svá, Þórr? En þá þorir þú ekki, er þú skalt við úlfinn vega, ok svelgr hann allan Sigföður). Ué, pra onde a serpente foi então? Não é uma evidência que a serpente já estava morta?

Outra pagina original do manuscrito GKS 2365 4º. Na foto destaquei em vermelho o texto onde Loki falou que Thor combaterá o lobo ("Úlfinn vega") e não a serpente no Ragnarök. Como Thor é chamado de "O Único Matador da Serpente" antes de enfrentar o monstro no Hymiskviða, é possível que o deus exterminou a serpente na pesca e a fala de Loki confirmou isso. Se o Ragnarök era uma profecia onde o filho da Terra e o filho de Loki se matarão, é provável que Thor a anulou.

 As versões de Gamli e Úlfr onde Thor decapitou a serpente são muito importantes porque são datados de meados do século 10 d.C. que corresponde ao final do período pagão. A composição da Völuspá também é datada do final do século 10 d.C., porém a influência cristã na obra é inegável (note que no final pagão temos: os filhos dos deuses, um casal humano, uma árvore, um dragão e um deus que surgirá, que é exatamente o começo que é dito na bíblia: deus e seus anjos, um casal humano, uma árvore e uma serpente), o que coloca esta versão em dúvida. Porque parece que o fim do paganismo abre alas para o cristianismo, a antiga fé morre para dar entrada para a outra. Lembrando que usar "roupagem pagã" nos elementos cristãos (e vice versa) era comum no norte assim que o cristianismo chegou na Escandinávia: Jesus é apresentado como um guerreiro, São Olavo era descrito como Thor, Santa Lucia é associada ao Sol o que lembra a deusa Sunna e etc. Desse modo, elementos pagãos podem ter sido reinterpretados com "roupagem cristã" no período de transição entre as duas religiões. A possibilidade da profecia da Völva tenha sido anulada é grande, pois ela narrou eventos que poderia acontecer, então, Thor matou a serpente na pesca, evitando assim o pior no Ragnarök. Vale lembrar que narrações religiosas possuem muitas versões que nem sempre batem, mas provavelmente a versão mais antiga é onde Thor matava a serpente e sobrevivia ileso (algo mencionado pela renomada Hilda R. E. Davidson). A grande maioria das pessoas preferem acreditar na versão da Völuspá que é mais famosa e bem construída, do que nas versões de Gamli e Úlfr porque ambas conseguem pôr o Ragnarök em xeque.

 Os termos "laust af" e "lysti af" (de "ljósta af") usado na ação de Thor na cabeça da serpente no texto tem sentido de cortar fora, separar, arrancar, ou remover.

 Então, temos a opinião de dois homens pagãos, Gamli e Úlfr, que afirmam que Thor matou a serpente na pesca; e a opinião de Snorri que era cristão do século 13 d.C. achando que o monstro sobreviveu. Qual opinião é mais importante? A dos pagãos que veneravam Thor ou a de Snorri que era cristão e dizia que os deuses eram homens divinizados? Pensem nisso!  

 Outra coisa deve ser mencionada: a maioria das fontes sobre a religião nórdica e seus deuses chegaram até nós pelas mãos da igreja (exceto alguns textos rúnicos e arte pagã nas estelas), alguns relatos são provados pela arqueologia, mas devemos ter muito cuidado aqui, pois esta mesma instituição, no passado, fraldava milagres, relíquias, e era comum eles insultarem e rebaixarem as divindades nas sagas. Por isso devemos ter olhar crítico sempre! Os povos pagãos da Escandinávia passavam sua história oralmente, e as runas que era o alfabeto deles, era usado por quem entendia, afinal nem todos sabiam ler. 


FONTES:

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

Gods And Myths Of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

Myth and Religion of the North: The Religion of Ancient Scandinavia, E. O. G. Turville-Petre

Myths of the Pagan North: The Gods of the Norsemen, Christopher Abram 

Norse Mythology: A Guide to the Gods, Heroes, Rituals, and Beliefs, John Lindow

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

The Poetic Edda, Henry Adams Bellows

Thor's Hammer, Hilda R. E. Davidson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

http://www.vsnrweb-publications.org.uk/Saga-Book%20XXIV.pdf

domingo, 30 de abril de 2023

As origens e a juventude de Thor

 Segundo Snorri Sturluson, Thor (Þórr) é o primeiro filho (fyrsta soninn) de Odin (Óðinn) e Jord (Jörð), e por causa dessa combinação de poderes, ele é o mais poderoso e o mais forte dos deuses. Thor é imbuído de poder e força e por isso ele podia vencer todas as criaturas (Honum fylgði afl ok sterkleikr. Þar af sigrar hann öll kvikvendi).

Thor levantando o gato de Utgard-Loki (Útgarðr-Loki), arte de Katharine Pyle tirada da internet.

 Pouco se sabe sobre a juventude de Thor, mas o prólogo da Edda em Prosa nos dá algumas informações a respeito disso. Porém, devo lembra-los que este relato foi evemerizado (teoria de que os deuses antigos eram heróis do passado divinizados), e contém material que não fazia parte originalmente da tradição pagã nórdica. O prólogo, que é considerado uma adição tardia a Edda em Prosa (lembrando que esses textos foram coletados após a era pagã nórdica), nos fala que Thor era descendente da filha do rei de Tróia, Príamo, que era chamada Tróan e do rei Menon. Na idade média era comum os europeus acharem que descendiam de Troianos, mas isso não fazia parte da fé pagã nórdica, embora haja conexão do panteão nórdico com o panteão das tradições indo-europeias. Afinal, a região habitada dos indo-europeus estava próxima de vários povos como os Hititas (que são considerados de origem indo-europeia), Acádia, e outros. Como podemos ver essa "origem" de Thor é muito contestada. Num dos manuscritos da Edda em Prosa Thor é identificado com Júpiter e com Heitor (o herói de Tróia por causa da similaridade do nome, embora de etimologia diferente). É possível que o culto de Thor tenha vindo da estepe pôntica na Europa oriental ou Ásia menor (Hipótese Curgã) até a Escandinávia e isso explicaria esse relato do prólogo, mas como ele foi evemerizado, então, é incerto.

 Mas, voltando ao assunto, o prólogo ainda narra que Thor foi criado por Loríkús e Lóra ou Glóra. No Skáldskaparmál é dito que Thor foi criado por Vingnir e este último está na lista de gigantes no Nafnaþulur. Então, podemos deduzir que esse casal eram gigantes. Thor também é conhecido por esse nome (Vingnir), o que nos leva a crer que foi em lembrança ao pai adotivo que ele ganhou essa denominação. Com 10 anos Thor recebeu as armas de seu pai, mas não clarifica quais eram (dificilmente é o martelo aqui, porque esta arma foi dádiva de Brokkr e Sindri/Eitri, contudo nas fontes são citados uma clava e um cetro como instrumento na mão do deus). Thor é descrito como belo e muito destacado por sua aparência divina. Com 12 anos Thor atingiu a plenitude de sua força prodigiosa, depois ele matou seus pais adotivos e tomou posse do reino de Thrudheim (Þrúðheimr) que é identificado como sendo a Trácia (evemerização lembram?). Após isso, Thor andou pelo mundo vencendo e matando berserkers, gigantes, muitos animais selvagens e o maior dos dragões (Þá fór hann víða um lönd ok kannaði allar heimshálfur ok sigraði einn saman alla berserki ok alla risa ok einn inn mesta dreka ok mörg dýr). O maior dos dragões é uma referência a Serpente Midgard (Miðgarðsormr). Na região norte do Mundo, Thor conheceu Sif e se casou com ela. O prólogo identifica Sif com Sibila. O interessante aqui é que Thor matou a serpente e saiu ileso para se casar (isso ficará para outro post). Thor é canonicamente filho de Odin e isso aparece em várias fontes antigas, mas praticamente nada se sabe sobre sua criação pelo gigante Vingnir. Na Völuspá (e Gylfaginning) é mencionado, que após a criação, a trindade criadora voltava para a casa quando encontrou árvores a beira mar e criou o par humano, então, é possível que Thor foi criado por gigantes neste período, pois os gigantes estavam repovoando a espécie em Jotunheim (Jötunheimr) logo após o dilúvio. O trio criador andava pela Terra quando gerou divindades, seres semidivinos e humanos e depois foram para o lar dos deuses recém criado.

 O número 10 nas runas do Antigo Fuþark corresponde a *Nauthiz e representa aquilo que é necessário, o que é preciso, e está associado ao destino, já o número 12 representa a *Jera que é o ano, o ciclo, e a colheita. Então, Thor como o protetor dos deuses e homens, é o agente do destino, que traz o fim as forças contrárias a criação representados pelos gigantes. Podemos entender que Thor foi destinado a trazer fim aos gigantes ao mesmo tempo que mantém as colheitas com suas tempestades.

 

FONTES:

A Genealogia dos Deuses Nórdicos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

History of the Archbishops of Hamburg-Bremen, Adam of Bremen trad. Francis J. Tschan

Myth and Religion of the North: The Religion of Ancient Scandinavia, E. O. G. Turville-Petre

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes Volume I, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Ynglinga_saga

terça-feira, 4 de abril de 2023

O dilúvio nórdico

 Relatos sobre um dilúvio universal devastador ocorre em praticamente todas as civilizações antigas: Mesopotâmia, Grécia, Índia, Hebreus, etc... A lista de povos é enorme, mas ficarei por aqui pra não sair do foco.

A morte de Ymir (Ýmir) nas mãos dos filhos de Borr, arte de Lorenz Frølich.

 A narrativa do dilúvio nórdico citado brevemente nas duas Eddas (Eddur) é diferente dos demais povos em alguns pontos, o que torna tudo ainda mais interessante, veja:

  • O evento ocorreu antes da criação de Midgard (Miðgarðr, o planeta Terra), enquanto noutras civilizações o cataclismo ocorreu na Terra já formada.
  • O transporte usado pelos sobreviventes no dilúvio nórdico é incerto, enquanto noutras civilizações na maioria das vezes é um barco (mas, também existem variações).
  • Apenas Bergelmir e sua esposa estavam a bordo do objeto que os salvou do dilúvio, pois não existiam animais e homens ainda, enquanto noutras narrativas pelo mundo a maioria das vezes é citado animais e filhos do casal sobrevivente, mas as versões também variam.

 O dilúvio nórdico aconteceu devido o assassinato de Ymir pelas mãos dos filhos de Borr: Odin, Vili e Ve (Óðinn, Vili e ). O sangue jorrado do colossal primeiro ser inundou a região primordial do Ginnungagap, matando todos os gigantes (Hrimþursar), exceto Bergelmir e sua esposa. Bergelmir, era filho de Thrudgelmir (Þrúðgelmir) e neto de Ymir. O Ginnungagap era um local cheio de gelo grosso e espesso, mas com água derretida também, o gelo duro era como solo firme, os seres primordiais viviam neste local. Não há detalhes de como Bergelmir conseguiu se salvar, se ele teve ajuda de algum dos três deuses criadores, ou se foi o pai dele que o alertou, mas Bergelmir é chamado de gigante sábio (inn fróði jötunn) o que evidência que ele era de natureza benigna e diferente dos demais familiares.

 O transporte usado por Bergelmir e sua esposa para sobreviverem também é incerto, pois a palavra para descreve-lo é "lúðr" que pode significar uma "trombeta" ou "caixa [de madeira]" usada em moinho.

 A trombeta de Heimdall (Heimdallr), a Gjallarhorn, possui conexões com a fonte da sabedoria de Mimir (Mímir) onde antes ficava o Ginnungagap. Thor (Þórr) bebeu parte do oceano que saia do enorme chifre de Utgard-Loki (Útgarðr-Loki). Então, o significado de "trombeta" que tem relação com o mar não é impossível aqui e assim o casal pode ter se equilibrado sobre o instrumento como se fosse um navio. Este instrumento escandinavo usado desde da idade do bronze é bem grande em relação ao tamanho de um homem (medem entre 1.5 a 2 metros), então leve na proporção de um gigante. 

Lúðr encontrado na Escânia, Suécia, datado entre 899-700 a.C., foto de internet.

 A caixa [de madeira] pode se referir aos utensílios dos antigos moinhos quando eram cheios de grãos moídos e, desse modo, foi usado como "barco" pelo gigante. A ideia de um caixão/esquife também deve ser mencionada, pois já foi encontrado um ataúde de madeira de carvalho na Dinamarca contendo o corpo da garota de Egtved de 3500 mil anos atrás. Na literatura nórdica as árvores eram vistas como guardiãs e protetoras, pois Lif e Leifthrasir (Líf e Leifþrasir) sobreviverão ao Ragnarök no Bosque do Tesouro de Mimir (Hoddmímis Holt), que é outra denominação da Yggdrasill; Örvar-Oddr usou um tipo de armadura feito de casca de árvore (næframaðr). Então, o significado de "caixa [de madeira]" também é muito possível, e o mais provável também diante do cenário. A caixa boiaria sobre as águas contendo alimento com o casal gigante. 

Ataúde feito de tronco de árvore da garota de Egtved, Dinamarca, datado de 3500 mil anos. Foto de internet.

 O moinho também é associado ao mar como no caso de Grótti, que era do rei Frodi (Fróði). Segundo se conta, as gigantas escravas Fenja e Menja afundaram o navio do rei Mysing (Mýsingr) moendo sal, devido ao peso. Quando a pedra do moinho afundou no mar causou um redemoinho gigante. 

Fenja e Menja em Grótti, arte de Carl Larsson e Gunnar Forssell de 1886.

Moinho nórdico do período de 1400 d.C., o transporte de Bergelmir em questão seria a caixa de madeira logo abaixo da pedra circular. Fonte da imagem: https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/images/b-land-1400-norse-mill-s.jpg 

 Como foi dito acima, é difícil saber o significado correto, até porque este período é anterior a Terra, e não havia madeira, pedra ou metal, porque estes elementos foram fabricados do corpo de Ymir pelos deuses. Contudo, como a região do Ginnungagap é imensamente colossal e Ymir era enorme, é possível que levou algum tempo para as águas chegarem até onde Bergelmir vivia, o que daria tempo para ele fabricar o seu transporte e nesse caso os deuses já teriam criado a Terra do corpo do gigante primordial e o solo brotado vegetais. Isso parece ser o caso aqui, porque os deuses criam coisas com seu poder e vontade quase que instantaneamente. A Völuspá parece corroborar esta ideia, pois o trio criador elevou Midgard (a carne de Ymir) do mar (o sangue de Ymir) e na sequência, então, os raios solares fizeram as plantas brotaram.

 Porém, este não é o único dilúvio nas narrativas nórdicas, pois há menção a mais dois: o dilúvio causado por Jormungand (Jörmungandr) quando ele combaterá Thor, e outro quando tentaram profanar o túmulo de Balder.

 Na Völuspá e na Edda de Snorri é comentado que no Ragnarök a serpente se levantará do oceano espalhando as ondas e cuspindo veneno para todo lado. Assim que o monstro encontrar Thor, eles combaterão, e o deus do trovão vencerá o inimigo antes de cair, então, os homens deixarão seus lares e logo depois a Terra afunda no mar. É um outro dilúvio universal que está por vir no final dos tempos. Isso porque na religião nórdica o universo é cíclico: nasce, se mantém por um tempo, morre, renasce e assim vai.

 Saxo Grammaticus mencionou um episódio diferente sobre a morte de Balder, o filho de Odin. O semideus (nesta versão) morreu depois de enfrentar Hod (Höðr), e foi sepultado. Este túmulo era muito famoso, e os homens de um certo Harald decidiu abri-la em busca de tesouros. Mas, pararam de terror, pois de repente o cume da sepultura se partiu e ressoou poderosamente e uma torrente de água despencou como um dilúvio, enchendo tudo na região instantaneamente. Para salvar suas vidas, os homens fugiram do local. Saxo pareceu não acreditar na narrativa pagã que ele registrou e a descreveu com sua visão cristã, acreditando que era ilusão fantasmagórica conjurada por mágica, mas que não era real. É claro que a enchente aqui é de menor proporção em relação aos outros exemplos, mas não deixa de ser menos importante ou curioso. Este episódio lembra a narrativa de Snorri onde ele comentou que todos os seres choraram por Balder exceto Loki disfarçado. Devo lembrar que esses exemplos de dilúvios também podem ser um eco longínquo de geleiras derretendo que encheram regiões do polo Norte no passado (da última era glacial?) que ficou registrado na memória dos nativos de lá daquele tempo e passados oralmente de geração para geração.

 É notável que nos três dilúvios nórdicos mencionados esta relacionado a morte de divindades: Ymir antes da criação da Terra, Balder no passado já na Terra, e Jormungandr contra Thor no fim dos tempos que ocorrerá segundo as Eddas.


FONTES:

An Icelandic-English Dictionary, Richard Cleasby & M. A. Gudbrand Vigfusson

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes vol. 1, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

The Elder or Poetic Edda Commonly Known as Sæmund's Edda, Olive Bray

The Poetic Edda, Carolyne Larrington

The Prose Edda, Jesse L. Byock

SITES CONSULTADOS:

https://en.natmus.dk/historical-knowledge/denmark/prehistoric-period-until-1050-ad/the-bronze-age/the-egtved-girl/the-egtved-girls-grave/

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/page01.htm

https://septisphere.wordpress.com/2019/01/13/pre-industrial-machines-norse-mill/

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