terça-feira, 4 de abril de 2023

O dilúvio nórdico

 Relatos sobre um dilúvio universal devastador ocorre em praticamente todas as civilizações antigas: Mesopotâmia, Grécia, Índia, Hebreus, etc... A lista de povos é enorme, mas ficarei por aqui pra não sair do foco.

A morte de Ymir (Ýmir) nas mãos dos filhos de Borr, arte de Lorenz Frølich.

 A narrativa do dilúvio nórdico citado brevemente nas duas Eddas (Eddur) é diferente dos demais povos em alguns pontos, o que torna tudo ainda mais interessante, veja:

  • O evento ocorreu antes da criação de Midgard (Miðgarðr, o planeta Terra), enquanto noutras civilizações o cataclismo ocorreu na Terra já formada.
  • O transporte usado pelos sobreviventes no dilúvio nórdico é incerto, enquanto noutras civilizações na maioria das vezes é um barco (mas, também existem variações).
  • Apenas Bergelmir e sua esposa estavam a bordo do objeto que os salvou do dilúvio, pois não existiam animais e homens ainda, enquanto noutras narrativas pelo mundo a maioria das vezes é citado animais e filhos do casal sobrevivente, mas as versões também variam.

 O dilúvio nórdico aconteceu devido o assassinato de Ymir pelas mãos dos filhos de Borr: Odin, Vili e Ve (Óðinn, Vili e ). O sangue jorrado do colossal primeiro ser inundou a região primordial do Ginnungagap, matando todos os gigantes (Hrimþursar), exceto Bergelmir e sua esposa. Bergelmir, era filho de Thrudgelmir (Þrúðgelmir) e neto de Ymir. O Ginnungagap era um local cheio de gelo grosso e espesso, mas com água derretida também, o gelo duro era como solo firme, os seres primordiais viviam neste local. Não há detalhes de como Bergelmir conseguiu se salvar, se ele teve ajuda de algum dos três deuses criadores, ou se foi o pai dele que o alertou, mas Bergelmir é chamado de gigante sábio (inn fróði jötunn) o que evidência que ele era de natureza benigna e diferente dos demais familiares.

 O transporte usado por Bergelmir e sua esposa para sobreviverem também é incerto, pois a palavra para descreve-lo é "lúðr" que pode significar uma "trombeta" ou "caixa [de madeira]" usada em moinho.

 A trombeta de Heimdall (Heimdallr), a Gjallarhorn, possui conexões com a fonte da sabedoria de Mimir (Mímir) onde antes ficava o Ginnungagap. Thor (Þórr) bebeu parte do oceano que saia do enorme chifre de Utgard-Loki (Útgarðr-Loki). Então, o significado de "trombeta" que tem relação com o mar não é impossível aqui e assim o casal pode ter se equilibrado sobre o instrumento como se fosse um navio. Este instrumento escandinavo usado desde da idade do bronze é bem grande em relação ao tamanho de um homem (medem entre 1.5 a 2 metros), então leve na proporção de um gigante. 

Lúðr encontrado na Escânia, Suécia, datado entre 899-700 a.C., foto de internet.

 A caixa [de madeira] pode se referir aos utensílios dos antigos moinhos quando eram cheios de grãos moídos e, desse modo, foi usado como "barco" pelo gigante. A ideia de um caixão/esquife também deve ser mencionada, pois já foi encontrado um ataúde de madeira de carvalho na Dinamarca contendo o corpo da garota de Egtved de 3500 mil anos atrás. Na literatura nórdica as árvores eram vistas como guardiãs e protetoras, pois Lif e Leifthrasir (Líf e Leifþrasir) sobreviverão ao Ragnarök no Bosque do Tesouro de Mimir (Hoddmímis Holt), que é outra denominação da Yggdrasill; Örvar-Oddr usou um tipo de armadura feito de casca de árvore (næframaðr). Então, o significado de "caixa [de madeira]" também é muito possível, e o mais provável também diante do cenário. A caixa boiaria sobre as águas contendo alimento com o casal gigante. 

Ataúde feito de tronco de árvore da garota de Egtved, Dinamarca, datado de 3500 mil anos. Foto de internet.

 O moinho também é associado ao mar como no caso de Grótti, que era do rei Frodi (Fróði). Segundo se conta, as gigantas escravas Fenja e Menja afundaram o navio do rei Mysing (Mýsingr) moendo sal, devido ao peso. Quando a pedra do moinho afundou no mar causou um redemoinho gigante. 

Fenja e Menja em Grótti, arte de Carl Larsson e Gunnar Forssell de 1886.

Moinho nórdico do período de 1400 d.C., o transporte de Bergelmir em questão seria a caixa de madeira logo abaixo da pedra circular. Fonte da imagem: https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/images/b-land-1400-norse-mill-s.jpg 

 Como foi dito acima, é difícil saber o significado correto, até porque este período é anterior a Terra, e não havia madeira, pedra ou metal, porque estes elementos foram fabricados do corpo de Ymir pelos deuses. Contudo, como a região do Ginnungagap é imensamente colossal e Ymir era enorme, é possível que levou algum tempo para as águas chegarem até onde Bergelmir vivia, o que daria tempo para ele fabricar o seu transporte e nesse caso os deuses já teriam criado a Terra do corpo do gigante primordial e o solo brotado vegetais. Isso parece ser o caso aqui, porque os deuses criam coisas com seu poder e vontade quase que instantaneamente. A Völuspá parece corroborar esta ideia, pois o trio criador elevou Midgard (a carne de Ymir) do mar (o sangue de Ymir) e na sequência, então, os raios solares fizeram as plantas brotaram.

 Porém, este não é o único dilúvio nas narrativas nórdicas, pois há menção a mais dois: o dilúvio causado por Jormungand (Jörmungandr) quando ele combaterá Thor, e outro quando tentaram profanar o túmulo de Balder.

 Na Völuspá e na Edda de Snorri é comentado que no Ragnarök a serpente se levantará do oceano espalhando as ondas e cuspindo veneno para todo lado. Assim que o monstro encontrar Thor, eles combaterão, e o deus do trovão vencerá o inimigo antes de cair, então, os homens deixarão seus lares e logo depois a Terra afunda no mar. É um outro dilúvio universal que está por vir no final dos tempos. Isso porque na religião nórdica o universo é cíclico: nasce, se mantém por um tempo, morre, renasce e assim vai.

 Saxo Grammaticus mencionou um episódio diferente sobre a morte de Balder, o filho de Odin. O semideus (nesta versão) morreu depois de enfrentar Hod (Höðr), e foi sepultado. Este túmulo era muito famoso, e os homens de um certo Harald decidiu abri-la em busca de tesouros. Mas, pararam de terror, pois de repente o cume da sepultura se partiu e ressoou poderosamente e uma torrente de água despencou como um dilúvio, enchendo tudo na região instantaneamente. Para salvar suas vidas, os homens fugiram do local. Saxo pareceu não acreditar na narrativa pagã que ele registrou e a descreveu com sua visão cristã, acreditando que era ilusão fantasmagórica conjurada por mágica, mas que não era real. É claro que a enchente aqui é de menor proporção em relação aos outros exemplos, mas não deixa de ser menos importante ou curioso. Este episódio lembra a narrativa de Snorri onde ele comentou que todos os seres choraram por Balder exceto Loki disfarçado. Devo lembrar que esses exemplos de dilúvios também podem ser um eco longínquo de geleiras derretendo que encheram regiões do polo Norte no passado (da última era glacial?) que ficou registrado na memória dos nativos de lá daquele tempo e passados oralmente de geração para geração.

 É notável que nos três dilúvios nórdicos mencionados esta relacionado a morte de divindades: Ymir antes da criação da Terra, Balder no passado já na Terra, e Jormungandr contra Thor no fim dos tempos que ocorrerá segundo as Eddas.


FONTES:

An Icelandic-English Dictionary, Richard Cleasby & M. A. Gudbrand Vigfusson

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes vol. 1, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

The Elder or Poetic Edda Commonly Known as Sæmund's Edda, Olive Bray

The Poetic Edda, Carolyne Larrington

The Prose Edda, Jesse L. Byock

SITES CONSULTADOS:

https://en.natmus.dk/historical-knowledge/denmark/prehistoric-period-until-1050-ad/the-bronze-age/the-egtved-girl/the-egtved-girls-grave/

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/page01.htm

https://septisphere.wordpress.com/2019/01/13/pre-industrial-machines-norse-mill/

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