Bom, nada melhor que começar o primeiro post deste Blog com as divindades primordiais da cosmologia nórdica: Ymir (e seus filhos gigantes), Buri, Borr, Odin e seus irmãos. Muitas coisas são difundidas pela internet sobre a religião e/ou mitologia nórdica, mas também existem erros de interpretação. Incrivelmente uma inverdade pega mais do que a verdade principalmente no mundo de hoje. Eu sempre colocarei os nomes na forma original entre parênteses "()", ou seja, no Nórdico Arcaico, os que estiverem sem é porque não muda na língua nórdica como no caso Bestla ou Vili. Nomes com "?" são de significado incerto. No estágio inicial da criação, se usa o termo "dia" para designar tempo, mas neste período não havia estrelas, nem sol, nem lua para contar a passagem do tempo (a forma que era usada pelos povos germânicos, então, não havia tempo). Era apenas para indicar uma ordem de surgimento.
Ymir (Ýmir) foi o primeiro ser a existir segundo as duas Eddas (a Poética e a Prosaica, as Eddur), enquanto Saxo Grammaticus parece corroborar essa afirmação quando ele mencionou que os gigantes surgiram primeiro que as divindades. Ymir surgiu quando o calor de Muspellsheim (Múspellsheimr) se encontrou com as camadas de gelo do Niflheim (Niflheimr) no meio do Ginnungagap, fazendo-as derreter. Ymir logo gerou um par de filhos do braço e um filho monstruoso dos pés enquanto dormia e suava. Esse par de filhos nascidos do braço esquerdo são descritos como homem e mulher (maðr ok kona ou mög ok mey dependendo da fonte), enquanto o que nasceu dos pés é um gigante de seis cabeças chamado Thrudgelmir. Ymir, então, simboliza a potência criadora, porém deformado e imperfeito. Ymir foi alimentado pelo segundo ser a surgir na criação: a vaca Audhumbla. Ymir é o pai de todos os gigantes (jötnar), depois ele foi morto pelos três filhos de Borr. Ymir não é o criador na religião nórdica embora seu corpo serviu para a criação do cosmo, mas ele tem paralelos noutras religiões antigas: o gigante Purusha foi desmembrado pelos deuses para dar surgimento ao mundo na Índia (no período Védico); o gigante Pangu surgiu do ovo cósmico de perfeito equilíbrio entre Yin e Yang e ajudou na criação do cosmo, mas depois que morreu várias coisas surgiram do seu corpo. Na Mesopotâmia, Apsu e Tiamat era um par de divindades primordiais que foram mortos pelos deuses mais jovens e seus corpos foram usados para fabricar várias coisas no universo. Ymir, então, tem muito em comum com estas divindades citadas, pois seu nome parece significar "gêmeo" ou "duplo" indicando natureza masculina e feminina num único ser e isso faz sentido, porque ele gerou filhos sem uma consorte. Segundo Tácito, os germânicos do 1º século d.C. acreditavam em Tuisco (ou Tuisto dependendo do manuscrito) o deus surgido da Terra, que era o pai das tribos. Tuisco possui conexão com a antiga palavra sueca tvistra que significa "separado" o que lembra algo que era duplo e foi dividido tal como Ymir. O nome Ymir provavelmente vem do proto-germânico *jumja- que significa "gêmeo". No védico temos Yamá (o primeiro mortal) e no Avesta temos Yima (também um ser mítico) com o mesmo significado: "gêmeo". Se o corpo de Ymir tinha energia masculina e feminina como seu nome sugere, então, tudo na criação possui essa característica, pois sua carcaça serviu para dar forma a toda criação (isso será abordado futuramente). Ymir também é chamado de Aurgelmir ("Rugidor Nascido da Terra/do Barro/do Lodo?", referente ao seu nascimento), Brimir ("Rugido?/Vagalhão?/Oceano?", nome dele já morto se referindo ao sangue jorrado), Bláinn ("Azulado", nome dele já morto, possivelmente indicando podridão do corpo) e possivelmente Fornjótr ("Primeiro Gigante?", este possui muitos possíveis significados, mas ficará para outro post).
Audhumbla (Auðumbla, Auðhumla ou Auðumla) surgiu logo após Ymir, também do degelo, e ela alimentou o gigante com quatro torrentes de leite saídos de suas tetas. A vaca sagrada se alimentava lambendo o gelo de onde tirava o sal. As quatro torrentes de leite talvez possa simbolizar a própria Via Láctea. No primeiro dia enquanto ela lambia os blocos de gelo, os cabelos de um homem surgiram, no segundo dia toda cabeça e no terceiro dia o corpo inteiro foi libertado do gelo. Audhumbla também simboliza o espírito da mãe natureza, a vaca era muito importante para os povos germânicos, pois era o símbolo de riqueza e ajudava na sobrevivência e manutenção da vida com seu leite. Duas runas são associadas ao gado pelos germânicos: *Fehu ("gado, riqueza") e *Uruz ("Auroque", um boi selvagem extinto). As deusas Gefjon e Nerthus são associadas ao gado (mas isso será abordado noutros posts) e possuem um lado maternal bem acentuado. A deusa da Terra Prithvi dos hindus é associada a vaca. A deusa Hathor tinha cabeça de vaca e Ísis também era associada a esse animal entre os egípcios, a Hera dos gregos também é associada as vacas, e elas são as deusas-mães de seus respectivos panteões. A vaca Gavaevodata do Zoroastrismo (vaca primordial) e Kamadhenu dos hindus (numa versão ela é nascida do oceano de leite) parecem ser contrapartes de Audhumbla em algum grau. O nome de Audhumbla parece significar "Abundante/Rica (de auð-) Vaca Sem Chifres (de humla). Mas, auðr também significa "destino" e "deserto/espaço vazio" e desse modo pode significar "Vaca do Destino" ou "Vaca do Local Deserto/do Espaço Vazio", que é de onde ela surgiu (no meio do Ginnungagap).
Buri (Búri) foi o primeiro deus surgido no gelo que foi libertado pela vaca Audhumbla (no texto original temos: "er hon sleikði steinana, kom ór steininum a kveldi manns hár" que traduzido fica: "enquanto ela lambia os blocos, surgiram cabelos de um homem"). Na internet costumam dizerem que Odin é neto da vaca, mas Audhumbla não criou Buri, ela o libertou, como podemos notar pelo texto. Por isso, tome cuidado com o que lê na internet. Buri era belo, alto e poderoso. Ele gerou Bor. Nas fontes não é narrado como Buri gerou Bor, mas é provável que foi tal como Ymir, ou seja, sozinho, por autogênese. Buri também representa o poder criador, porém, mas ordenado, mais natural. Buri significa "Produtor" ou "Pai".
Bor (Borr também Burr), então, decidiu se casar com Bestla, filha do gigante Bolthorn (Bölþorn) e eles tiveram três filhos: Odin, Vili e Ve (Óðinn, Vili e Vé). Praticamente nada se sabe sobre Bor e Bestla, mas a última parece ser irmã de Mimir. O nome do pai de Bestla, Bolthorn, possui relação com outra denominação de Ymir: Thorn, que significa "espinho". Ymir é descrito como maligno (illr) na Edda em Prosa e Bolthorn significa "Espinho Maligno". Bor é da segunda geração divina e faz sentido Bestla ser também da segunda geração de gigantes. Bor significa "Filho" e Bestla pode significar, segundo alguns estudiosos, a "Esposa" (do Frisão Arcaico "bös") ou "Casca de Árvore (do islandês "bast")". Contudo, o significado do nome de Bestla é incerto. Mas, é interessante notar Bestla ter o nome relacionado a algum tipo de árvore, porque Mimir, seu irmão, é o guardião da fonte da sabedoria que está numa das raízes da árvore cósmica Yggdrasill.
Mimir (Mímir) é um gigante sábio e amigável que viveu entre os Æsir antes de ser decapitado no Vanir. É muito possível que o par de gigantes nascidos de Ymir sejam Mimir e Bestla, embora seja incerto. O nome Mimir pode estar relacionado com a palavra latina "memor" que significa "memória" e com a islandesa "minni" que significa "lembrança/memória". A palavra gótica "mimz" que significa "mutilado" pode ter alguma relação com ele também já que ele foi mutilado, tendo a cabeça decepada.
Thrudgelmir (Þrúðgelmir) era o filho de seis cabeças nascido dos pés de Ymir assim que o gigante dormiu e suou. Ele foi pai de Bergelmir. Bergelmir nasceu antes que a Terra (Jörð) fosse criada. Bergelmir tinha família, mas seus nomes não são mencionados nas fontes. Thrudgelmir significa "Aquele Que Ruge Poderosamente" (o que faz sentido já que possui seis cabeças e poderia rugir por elas ao mesmo tempo) e Bergelmir talvez signifique "Aquele Que Ruge da Montanha" (o que também faz sentido porque ele foi um dos poucos sobreviventes ao dilúvio e pode ter chegado em segurança em alguma montanha de gelo, e gigantes habitam nestes lugares e no frio), embora este último seja incerto. O diluvio nórdico ocorreu antes da criação do planeta terrestre e dos homens e foi no local primordial: Ginnungagap.
Após isso, vários gigantes passaram a surgir. Os gigantes se proliferam com rapidez estupenda gerando ninhadas. Neste período havia apenas os mundos de Muspellsheim e Niflheim e entre eles, no meio, o Ginnungagap. Estes seres primordiais viviam no meio, antes da nossa realidade existir. Estes dois mundos são de planos de existência diferentes e opostos (fogo e calor intenso, gelo e frio intenso), mas se interligam ao mundo físico. Isso também ficará para outro post.
Nos textos coletados encontrados nas Eddas, as vezes, os deuses e gigantes são chamados de homens, para designar o sexo biológico dos indivíduos, mas em alguns casos eles são evemerizados (evemerismo: teoria de que divindades eram homens mortais divinizados do passado). Na Edda em Prosa, por exemplo, os deuses são identificados com os homens de Tróia. Porém, a palavra Guð/Goð que significa "Deus" no paganismo nórdico é neutra, podendo se referir a um deus ou deusa, após a conversão ela passou a ser masculina. Isso porque essas narrativas míticas foram coletados e compilados por Snorri Sturluson e anônimos que eram cristãos, ao julgar pela período do registro (no século 13 d.C., o último país pagão do Norte da Europa foi a Suécia que se converteu no século 12). Obviamente para alguém da fé monoteísta não fazia sentido registrar as velhas lendas de modo que deveria, pois senão colocaria a nova fé (a cristã) em risco já que a pagã foi erradicada com muito esforço. A igreja censurava e perseguia práticas pagãs, havendo inclusive leis contra costumes antigos. Os povos germânicos passavam sua história oralmente, e poucos eram letrados. A runas que era o alfabeto dos povos germânicos, provavelmente era usado mais pela elite do que pelo povo comum. Mas, as Eddas contém material pré-cristão, contudo devemos ter olhar crítico, pois eles estão impregnados com a visão cristã da época. Não tenho a intensão de denegrir o cristianismo e nem a igreja, apenas contextualizei para vocês poderem entender melhor sobre o assunto em determinada época passada. Para entender uma fé, devemos compreende-la, estuda-las, e mesmo assim é complicado, pois nem sempre uma fonte escrita bate com as práticas religiosas investigadas pela arqueologia, muitas vezes elas são contraditórias.
FONTES:
Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall
Edda, Anthony Faulkes
Saxo Grammaticus: The History of the Danes, Oliver Elton
The Poetic Edda, Carolyne Larrington
SITES CONSULTADOS:
https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i
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