segunda-feira, 12 de junho de 2023

O nascimento de Heimdall

 Heimdall (Heimdallr) é um dos deuses mais interessantes do panteão nórdico, mas infelizmente pouco se sabe sobre essa grande divindade e algumas coisas são confusas e conflitantes. Segundo Snorri na sua Edda em Prosa, Heimdall é filho de Odin (Óðinn) e de nove mães, todas irmãs. O poema Völuspá hin Skamma ("A Völuspá Menor") conta que o deus foi nascido de forma milagrosa e sobrenatural.

Heimdall soprando a Gjallarhorn numa arte islandesa de um manuscrito de 1765.

 Heimdall nasceu no início dos tempos nas profundezas da Terra (Jarðar þrömr), suas nove mães o geraram e elas eram chamadas de: Gjalp ("Aquela Que Uiva"), Greip ("Aquela Que Aperta"), Eistla ("Aquela Que Brilha?" ou "Tempestuosa?"), Eyrgjafa ("Aquela Que Espalha A Areia?"), Ulfrún ("Loba" ou "Runa do Lobo"), Angeyja ("Ilha De Cheiro Agradável?"), Imðr ("Crepúsculo" ou "Tempestuosa"), Atla ("A Terrível") e Járnsaxa ("Aquela Com A Faca De Ferro"). Heimdall nasceu pelo poder da Terra (Jarðar megni), do mar congelado (svalköldum sæ) e pelo sangue do javali sacrificado (sónardreyra). Os nomes das mães de Heimdall sugerem conexão clara com o mar. No poema Hárbarðsljóð da Edda Poética, Odin disfarçado de Hárbarðr se gabou de se deitar com sete irmãs (systrum sjau) que traçavam cordas na areia e elas escavavam profundos vales na terra (rios?) e tal relato pode ter conexão aqui, já que das nove irmãs, sete estavam vivas. Gjalp e Greip foram mortas por Thor (Þórr).

 Heimdall, então, nasceu da união dos poderes da Terra, do mar congelado e do javali sacrificado. As nove gigantas que são suas mães, podem ser a personificação dos rios que ligam os nove mundos, desse modo, cada uma representaria as águas subterrâneas que correm nas raízes de Yggdrasill e acabam se encontrando. Isso parece ser confirmado numa das possíveis tradução da estrofe 2 do poema Völuspá da Edda Poética: "Eu me lembro dos nove domicílios/mundos, das nove gigantas, na gloriosa Dispensadora [Yggdrasill] abaixo da terra/Níu man ek heima, níu íviðjur, Mjötvið mæran fyr mold neðan." O poder da Terra (Jörð) é prolifico, gerador de vida, energia. A Yggdrasill está situada em três níveis cósmicos, cada nível é dividido em três (3 + 3 + 3 = 9), mas conectada as fontes de água.

 O "mar" aqui pode ser Ægir, o gigante marinho, porque a palavra usada "" é um dos epítetos dele na Edda em Prosa e na Edda Poética. Ægir é pai de nove ondas, mas seus nomes não batem com os nomes da Völuspá hin Skamma, a não ser que sejam outras denominações delas. Porém, para complicar, Gjalp e Greip são filhas do gigante Geirrod (Geirröðr), que foram mortas por Thor. Járnsaxa se uniu a Thor e gerou Magni. Heimdall tem certas similaridades com deus irlandês Manannán mac Lir. Manannán mac Lir possuía um suíno que simbolizava a abundância de alimentos tal como o Sæhrímnir de Odin (que pode ter conexão com Heimdall como veremos logo abaixo); Manannán mac Lir significa "O Filho do Mar" e é relacionado ao mar (seu pai, Lir, é o deus do mar), e Heimdall é filho de gigantas marinhas (que alguns conectam com as filhas de Ægir, mas Odin também tem conexão com o mar); Manannán mac Lir é o guardião do outro mundo (mundo dos mortos) e Heimdall é o guardião dos deuses; Manannán mac Lir tinha um cavalo mágico e Heimdall também.

 O javali que foi sacrificado pode ter sido Sæhrímnir, esse javali é morto todos os dias e renasce todas as tardes pra ser servido aos Einherjar (guerreiros) do Valhall (Valhöll). Sæhrímnir representa o renascimento e a abundância. Contudo, a palavra "sónardreya" ("javali sacrificado") é associada a "sónargöltr" ("javali sacrificado") e ambas são ligadas ao Vanir, especialmente Freyr. No poema Þrymksviða da Edda poética Heimdall é dito ver muito além (o futuro) como outro Vanr (os membros do Vanir podem ver o futuro). O sónargöltr sacrificado em honra de Freyr tinha conexão com oráculos e divinação.

 Com isso, podemos deduzir que Heimdall é a personificação da própria Yggdrasill, já que ele está na entrada do céu em Hmininbjörg ("Montanha Celeste"). Odin, é a personificação do céu e isso corroboraria Heimdall ser seu filho, pois suas nove mães ficam embaixo das águas, Heimdall no meio entre a Terra e o firmamento e Odin no alto do céu.


FONTES:

A Genealogia dos Deuses Nórdicos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

An Icelandic-English Dictionary, Richard Cleasby & M. A. Gudbrand Vigfusson

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Gods and Myths of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar 

sexta-feira, 26 de maio de 2023

As origens de Tyr

 Tyr (Týr), o poderoso deus da guerra, da vitória, da coragem e da lealdade, foi muito venerado na antiguidade pelos povos germânicos e eles lhe honraram a terça-feira (dedicado ao planeta Marte que é seu correspondente latino). Tyr possui duas versões de origens nos relatos nórdicos: numa ele é filho de Hymir e sua esposa, e noutra ele é filho de Odin (Óðinn), embora muito pouco sobre o deus sobreviveu até nós.

Tyr tendo a mão amputada por Fenrir, manuscrito islandês de 1760.

 No poema Lokasenna, o Loki afirmou que Tyr tinha uma esposa e um filho que não são nomeados, que são um total mistério.

 Na Edda Poética, Tyr é identificado como filho do gigante Hymir e sua esposa, a avô do deus tinha 900 cabeças (hafði höfða hundruð níu). Assim, Tyr é descendente de gigantes (áttnið jötnar). Esses gigantes viviam perto do mar e em cavernas. A mãe de Tyr é descrita como enfeitada em ouro e de sobrancelhas alvas (algullin fram brúnhvít). A mãe de Tyr, no poema, é denominada "Frilla", que significa "Senhora", "Amante" ou "Amiga", e pode muito bem ser o nome próprio dela. Hymir é um gigante que vive no fim do céu (Hymir at himins enda) no leste de Élivágar (Býr fyr austan Élivága). O nome de Hymir pode significar "Aquele Que Esgueira Na Escuridão" (de hýma) ou "Crepúsculo" (de húm), indicando uma divindade provavelmente noturna, porque sua esposa Frilla pode representar a luz do amanhecer já que é vestida em ouro e de claras sobrancelhas. Tyr significa "Deus", mas seu nome está ligado ao protoindo-europeu *dyeus que significa "Luz Celestial/Brilho Diurno" (e relatado etimologicamente à Zeus dos gregos, Dyaus dos hindus, Júpiter dos romanos). Desse modo, o Crepúsculo (Hymir) se unindo ao amanhecer (Frilla), gerou a luz do céu (Týr). Uma genealogia muito interessante.

 Na Edda em Prosa, Tyr é identificado como filho de Odin (sons Óðins), mas não dá nenhum detalhe além dessa afirmação. A maioria dos sites de mitologia da internet afirmam que Frigg é mãe de Tyr, mas isso não se encontra nas fontes antigas, pelo contrário: existe uma fonte tardia que conta que Frigg é filha de Tyr (Friggjar faðir). Muitos acreditam que Frigg é a mãe dos Æsir se apoiando no fato mencionado no Gylfaginning da Edda em Prosa (Kona hans hét Frigg Fjörgvinsdóttir, ok af þeira ætt er sú kynslóð komin) e no poema Sonatorrek (Friggjar niðja), mas nas fontes antigas apenas Balder aparece de forma clara como seu filho (isso ficará para o post sobre Frigg).

 Então, como no caso de Jord (Jörð) visto no post anterior, Tyr (o Céu ou Luz Celeste) pode ter surgido assim que Odin estava edificando a criação, nascendo no momento do encontro da noite (Hymir) com o amanhecer do dia (Frilla) e por isso surgiu essa dupla genealogia. Isso casaria as duas versões. Talvez, as 900 cabeças da avó de Tyr possa representar as posições das estrelas no céu. Vale lembrar que o "nascimento" dos deuses não é igual ao dos humanos, as vezes, eles surgem adultos e plenos porque o universo necessita deles. Também deve ter dito que os mitos possuem versões que as vezes são conflitantes e contraditórios. 


FONTES:

A Genealogia dos Deuses Nórdicos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

Edda, Anthony Faulkes

Egils Saga, Bjarni Einarsson

The Icelandic Rune-Poem, R. I. Page

The Poetic Edda, Carolyne Larrington 

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

http://www.heimskringla.no/wiki/Sonatorrek_(B1)

domingo, 30 de abril de 2023

As origens e a juventude de Thor

 Segundo Snorri Sturluson, Thor (Þórr) é o primeiro filho (fyrsta soninn) de Odin (Óðinn) e Jord (Jörð), e por causa dessa combinação de poderes, ele é o mais poderoso e o mais forte dos deuses. Thor é imbuído de poder e força e por isso ele podia vencer todas as criaturas (Honum fylgði afl ok sterkleikr. Þar af sigrar hann öll kvikvendi).

Thor levantando o gato de Utgard-Loki (Útgarðr-Loki), arte de Katharine Pyle tirada da internet.

 Pouco se sabe sobre a juventude de Thor, mas o prólogo da Edda em Prosa nos dá algumas informações a respeito disso. Porém, devo lembra-los que este relato foi evemerizado (teoria de que os deuses antigos eram heróis do passado divinizados), e contém material que não fazia parte originalmente da tradição pagã nórdica. O prólogo, que é considerado uma adição tardia a Edda em Prosa (lembrando que esses textos foram coletados após a era pagã nórdica), nos fala que Thor era descendente da filha do rei de Tróia, Príamo, que era chamada Tróan e do rei Menon. Na idade média era comum os europeus acharem que descendiam de Troianos, mas isso não fazia parte da fé pagã nórdica, embora haja conexão do panteão nórdico com o panteão das tradições indo-europeias. Afinal, a região habitada dos indo-europeus estava próxima de vários povos como os Hititas (que são considerados de origem indo-europeia), Acádia, e outros. Como podemos ver essa "origem" de Thor é muito contestada. Num dos manuscritos da Edda em Prosa Thor é identificado com Júpiter e com Heitor (o herói de Tróia por causa da similaridade do nome, embora de etimologia diferente). É possível que o culto de Thor tenha vindo da estepe pôntica na Europa oriental ou Ásia menor (Hipótese Curgã) até a Escandinávia e isso explicaria esse relato do prólogo, mas como ele foi evemerizado, então, é incerto.

 Mas, voltando ao assunto, o prólogo ainda narra que Thor foi criado por Loríkús e Lóra ou Glóra. No Skáldskaparmál é dito que Thor foi criado por Vingnir e este último está na lista de gigantes no Nafnaþulur. Então, podemos deduzir que esse casal eram gigantes. Thor também é conhecido por esse nome (Vingnir), o que nos leva a crer que foi em lembrança ao pai adotivo que ele ganhou essa denominação. Com 10 anos Thor recebeu as armas de seu pai, mas não clarifica quais eram (dificilmente é o martelo aqui, porque esta arma foi dádiva de Brokkr e Sindri/Eitri, contudo nas fontes são citados uma clava e um cetro como instrumento na mão do deus). Thor é descrito como belo e muito destacado por sua aparência divina. Com 12 anos Thor atingiu a plenitude de sua força prodigiosa, depois ele matou seus pais adotivos e tomou posse do reino de Thrudheim (Þrúðheimr) que é identificado como sendo a Trácia (evemerização lembram?). Após isso, Thor andou pelo mundo vencendo e matando berserkers, gigantes, muitos animais selvagens e o maior dos dragões (Þá fór hann víða um lönd ok kannaði allar heimshálfur ok sigraði einn saman alla berserki ok alla risa ok einn inn mesta dreka ok mörg dýr). O maior dos dragões é uma referência a Serpente Midgard (Miðgarðsormr). Na região norte do Mundo, Thor conheceu Sif e se casou com ela. O prólogo identifica Sif com Sibila. O interessante aqui é que Thor matou a serpente e saiu ileso para se casar (isso ficará para outro post). Thor é canonicamente filho de Odin e isso aparece em várias fontes antigas, mas praticamente nada se sabe sobre sua criação pelo gigante Vingnir. Na Völuspá (e Gylfaginning) é mencionado, que após a criação, a trindade criadora voltava para a casa quando encontrou árvores a beira mar e criou o par humano, então, é possível que Thor foi criado por gigantes neste período, pois os gigantes estavam repovoando a espécie em Jotunheim (Jötunheimr) logo após o dilúvio. O trio criador andava pela Terra quando gerou divindades, seres semidivinos e humanos e depois foram para o lar dos deuses recém criado.

 O número 10 nas runas do Antigo Fuþark corresponde a *Nauthiz e representa aquilo que é necessário, o que é preciso, e está associado ao destino, já o número 12 representa a *Jera que é o ano, o ciclo, e a colheita. Então, Thor como o protetor dos deuses e homens, é o agente do destino, que traz o fim as forças contrárias a criação representados pelos gigantes. Podemos entender que Thor foi destinado a trazer fim aos gigantes ao mesmo tempo que mantém as colheitas com suas tempestades.

 

FONTES:

A Genealogia dos Deuses Nórdicos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

History of the Archbishops of Hamburg-Bremen, Adam of Bremen trad. Francis J. Tschan

Myth and Religion of the North: The Religion of Ancient Scandinavia, E. O. G. Turville-Petre

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes Volume I, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Ynglinga_saga

sábado, 22 de abril de 2023

As origens de Jord

 Nos registros coletados nas duas Eddas (Eddur) no século 13 d.C., a divindade Jord (Jörð, a Terra) tem duas origens. A Jord é conhecida por três coisas:

  1. É a Terra (o elemento terra) personificado.
  2. Foi esposa de Odin (Óðinn).
  3. É a mãe de Thor (Þórr).

Estátua de Jörð na Dinamarca de Stephan Sinding, foto de internet.

 Segundo Snorri, Jord era filha e esposa de Odin com quem gerou Thor (Jörðin var dóttir hans ok kona hans. Af henni gerði hann inn fyrsta soninn, en þat er Ása-Þórr). Nessa versão, Odin criou Jord da carne de Ymir (Ýmir). Nos Kenningar (metáforas da poesia escandinava) é dito que Odin deixou Jord e que ela era viúva de Odin. Este relato não é especificado em nenhum mito conhecido, mas é provável que seja uma referência ao fato de Odin ter se sacrificado na Yggdrasill e, então, renascido. Ou talvez porque Odin a deixou e não retornou, já que Frigg é a esposa oficial do deus supremo. Devemos entender que como Odin é o criador na cosmovisão nórdica, tudo feito por ele é considerado sua obra, sua criação, e nesse caso  a Terra é sua filha.

 A outra versão é mais complexa e/ou confusa, mas vamos por partes. A segunda versão da origem de Jord foi contada por Snorri também, provavelmente se apoiando no poema Sigrdrífumál ou em tradições antigas desconhecidas para nós.

 Snorri comentou na sua Edda que Jord era filha de Annar (Annarr ou Ónarr) e Nott (Nótt), e meia-irmã de Aud (Auðr) e Dag (Dagr). Nott, a personificação da Noite, era filha de Norfi (Nörfi) ou Narfi que era um gigante de Jotunheim (Jötunheimr). Praticamente nada se sabe sobre o pai de Nott. Porém, Snorri nos contou que Loki tinha um filho chamado de Nari ou Narfi com sua esposa Sigyn, que foi morto por Váli. Loki causou a morte de Balder e os deuses pagaram na mesma moeda, fazendo um dos seus matar o filho da malvada divindade. Nari ou Narfi foi despedaçado por Váli e suas entranhas serviram para aprisionar Loki. Se Norfi/Narfi for a mesma personagem que Nari/Narfi, então, Loki ajudou na criação tal como Lodur (Lóðurr) ao qual é identificado, segundo os poemas Lokrur e Þrymlur. Dificilmente Narfi (o pai de Nótt) é o Nari (o filho de Loki) aqui, porque os gigantes estavam exterminados durante a criação, pois só havia sobrado Bergelmir e sua esposa, mas é difícil saber ao certo já que os mitos possuem muitas versões e, as vezes, conflitantes. Tanto Norfi quanto Nott podem ser apenas personificação do escuro primordial. Vale lembrar que nas mitologias, algumas vezes, existem personagens como o mesmo nome (homônimos), mas são distintos como Tétis (a Titânida) e Tétis (a nereida mãe de Aquiles) dos gregos; Modi (Móði, filho de Thor) e Modi (um gigante morto por Thor), Agnar (Agnarr, filho de Hrauðungr) e Agnar (filho de Geirrod/Geirröðr), Geirrod (o gigante morto por Thor) e Geirrod (o favorito de Odin) dos escandinavos e etc. Os deuses e/ou divindades mais importantes não possuem homônimos, apenas as divindades menores. 

 Annar apareceu como o nome de um anão nos relatos nórdicos, e isso é contraditório, já que os anões nasceram da carne de Ymir (Jord, a Terra), o que torna isso extremamente dificultoso. Porém, Annar pode ser uma outra denominação para Odin, confirmando assim a primeira versão citada acima, porque o filho de Borr é chamado de Hárr ou o "Altíssimo" (indicando a 1º posição) e Þriði ou o "Terceiro" e Annar significa "Segundo". Odin apareceu sob três formas para Gangleri e duas destas denominações aparecem no poema Grímnismál. É muito possível que Annar seja outro nome de Odin, o que uniria as duas versões para as origens de Jord. Com isso, Jord é filha e esposa de Odin, e mãe-irmã de Thor.


FONTES:

A Genealogia dos Deuses Nórdicos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

Lokrur, Lóðurr and late evidence, Haukur Þorgeirsson

The Poetic Edda, Carolyne Larrington

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

sexta-feira, 14 de abril de 2023

O parentesco entre os seres na criação

 Como dito no post anterior, as Nornes (Nornir) governam os destinos porque elas surgiram do sangue de Ymir. Contudo, os seres na criação são todos aparentados de uma forma ou outra.

Os deuses nórdicos na ponte do arco-íris, arte de W. G. Collingwood de 1908: Freyr e Freyja, Njord (Njörðr) e Skadi (Skaði), Tyr (Týr), Thor (Þórr), Balder e Nanna, Odin (Óðinn) e Frigg.

 No início, existiam Ymir (Ýmir) com seus descendentes e a família de Búri, num local antes da existência humana. Quando o trio criador Odin, Vili e Ve (Vili e ) mataram Ymir, eles usaram a carcaça do colossal gigante para criar parte do universo: o céu (himinn) de seu crânio, a Terra (Jörð) de sua carne, os mares (sær) de seu sangue, as montanhas (björg) de seus ossos, as pedras (grjót) de seus dentes, as árvores (baðmr) de seus cabelos, e as nuvens (ský) de seu cérebro.

 Assim que a Terra foi criada, Odin se uniu a ela e gerou o seu primogênito: Thor, que é o mais forte dos deuses, homens e gigantes, porque ele possui o poder e força de seus pais Odin (personificação do céu) e Jord (Terra) combinados. Thor é uma mistura de poder espiritual (através de Odin) e físico (através de Jord), personificado pelo relâmpago, o raio, e o trovão. Os elfos (álfar) e anões (dvergar) surgiram como larvas na carne de Ymir (Ýmis hold que é um termo para Terra) e eles ganharam forma humana e intelecto do trio criador. Os homens (menn) foram criados de duas árvores a beira mar, que foram fabricados a partir dos cabelos de Ymir. Os filhos de Odin possuem mães gigantas como no caso de Vidar (Víðarr) e Vali (Váli). Vidar é filho de Grid (Gríðr) que vive em Jotunheim (Jötunheimr). A região de Jotunheim foi dado aos gigantes depois da criação pelo trio criador. A mãe de Vali, Rind (Rindr), é associada ao leste, que é a direção da região dos gigantes, na obra de Saxo ela foi evemerizada (teoria de que os deuses eram mortais famosos do passado que foram divinizados). Os outros filhos de Odin nasceram depois da criação (já que o Thor é seu primogênito). 

 O mar (sær) é um dos nomes de Ægir na poesia dos escaldos, ele é o senhor do mar, então, provavelmente ele surgiu do sangue de Ymir depois que o gigante foi morto e desmembrado. O próprio Ægir é chamado de "Sangue de Ymir" (Ýmis blóð) no Skáldskaparmál. A genealogia do Hversu Noregr Byggðis parece corroborar esta ideia (embora a obra é evemerizada), pois Hlér que é um dos nomes de Ægir, é filho de Fornjótr, cujo significado deste último pode ser "O Primeiro Gigante". Hlér tinha por irmãos Logi ("Fogo") e Kári ("Vento"). Como Ægir/Sær/Hlér é o mar e nasceu do sangue de Ymir, então, é possível que Logi/Eldr e Kári/Vindr também surgiram da mesma maneira. Provavelmente Logi nasceu do calor corporal interno de Ymir antes de esfriar, e Kári do último suspiro do gigante morto. Ægir é um gigante marinho, Logi um gigante de fogo e Kári um gigante da tempestade. Provavelmente os filhos de Fornjótr deram origem aos demais gigantes elementais após o dilúvio, tal como Bergelmir e sua esposa (no sentido de propagar a espécie).

 Interessante que na Índia existe um relato similar, onde os deuses e componentes do universo surgiram do corpo do gigante morto Purusha. Do umbigo de Purusha veio a atmosfera, de sua cabeça foi feito o Céu (Dyaus), e de seus pés a Terra (Bhumi, outro nome de Prithvi). O hino védico ainda conta mais: a Lua (Chandra) foi feito da mente de Purusha, o Sol (Surya) de seu olho, Indra (Tempestade, raio) e Agni (Fogo) nasceram de sua boca e e o Vento (Vayu) de seu alento. Das partes do corpo de Purusha veio também as classes sociais humanas.

 Como podemos notar, os deuses, os anões, os gigantes, as Nornas, os elfos e até a humanidade, segundo os nórdicos, são todos aparentados, por um lado através do trio criador e por outro lado através de Ymir cujo corpo serviu para outros seres surgirem de uma forma ou de outra. Talvez por isso os escandinavos pagãos respeitavam tanto a natureza. Segundo Tácito, os germânicos não costumavam representar os deuses com feições humanas porque isso era contrário a majestade divina, mas eles consagravam bosques, florestas e riachos aos quais davam nomes divinos. Claro que não podemos generalizar, até porque já foram encontradas imagens de deuses em território germânico e escandinavo. Por isso, Odin é chamado de "Pai de Tudo (Alföðr)", pois a ação deste deus deu início a todas as coisas, claro que com alguma ajuda de seus irmãos.


FONTES:

Gods and Myths of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

Myth and Religion of the North: The Religion of Ancient Scandinavia, E. O. G. Turville-Petre

Myths and Symbols in Pagan Europe: Early Scandinavian and Celtic Religions, Hilda R. E. Davidson

Purusha Sukta, Introdução e tradução para o português por Roberto de A. Martins 

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes Volume I, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Hversu_Noregr_bygg%C3%B0ist

https://sourcebooks.fordham.edu/source/tacitus1.asp

terça-feira, 4 de abril de 2023

O dilúvio nórdico

 Relatos sobre um dilúvio universal devastador ocorre em praticamente todas as civilizações antigas: Mesopotâmia, Grécia, Índia, Hebreus, etc... A lista de povos é enorme, mas ficarei por aqui pra não sair do foco.

A morte de Ymir (Ýmir) nas mãos dos filhos de Borr, arte de Lorenz Frølich.

 A narrativa do dilúvio nórdico citado brevemente nas duas Eddas (Eddur) é diferente dos demais povos em alguns pontos, o que torna tudo ainda mais interessante, veja:

  • O evento ocorreu antes da criação de Midgard (Miðgarðr, o planeta Terra), enquanto noutras civilizações o cataclismo ocorreu na Terra já formada.
  • O transporte usado pelos sobreviventes no dilúvio nórdico é incerto, enquanto noutras civilizações na maioria das vezes é um barco (mas, também existem variações).
  • Apenas Bergelmir e sua esposa estavam a bordo do objeto que os salvou do dilúvio, pois não existiam animais e homens ainda, enquanto noutras narrativas pelo mundo a maioria das vezes é citado animais e filhos do casal sobrevivente, mas as versões também variam.

 O dilúvio nórdico aconteceu devido o assassinato de Ymir pelas mãos dos filhos de Borr: Odin, Vili e Ve (Óðinn, Vili e ). O sangue jorrado do colossal primeiro ser inundou a região primordial do Ginnungagap, matando todos os gigantes (Hrimþursar), exceto Bergelmir e sua esposa. Bergelmir, era filho de Thrudgelmir (Þrúðgelmir) e neto de Ymir. O Ginnungagap era um local cheio de gelo grosso e espesso, mas com água derretida também, o gelo duro era como solo firme, os seres primordiais viviam neste local. Não há detalhes de como Bergelmir conseguiu se salvar, se ele teve ajuda de algum dos três deuses criadores, ou se foi o pai dele que o alertou, mas Bergelmir é chamado de gigante sábio (inn fróði jötunn) o que evidência que ele era de natureza benigna e diferente dos demais familiares.

 O transporte usado por Bergelmir e sua esposa para sobreviverem também é incerto, pois a palavra para descreve-lo é "lúðr" que pode significar uma "trombeta" ou "caixa [de madeira]" usada em moinho.

 A trombeta de Heimdall (Heimdallr), a Gjallarhorn, possui conexões com a fonte da sabedoria de Mimir (Mímir) onde antes ficava o Ginnungagap. Thor (Þórr) bebeu parte do oceano que saia do enorme chifre de Utgard-Loki (Útgarðr-Loki). Então, o significado de "trombeta" que tem relação com o mar não é impossível aqui e assim o casal pode ter se equilibrado sobre o instrumento como se fosse um navio. Este instrumento escandinavo usado desde da idade do bronze é bem grande em relação ao tamanho de um homem (medem entre 1.5 a 2 metros), então leve na proporção de um gigante. 

Lúðr encontrado na Escânia, Suécia, datado entre 899-700 a.C., foto de internet.

 A caixa [de madeira] pode se referir aos utensílios dos antigos moinhos quando eram cheios de grãos moídos e, desse modo, foi usado como "barco" pelo gigante. A ideia de um caixão/esquife também deve ser mencionada, pois já foi encontrado um ataúde de madeira de carvalho na Dinamarca contendo o corpo da garota de Egtved de 3500 mil anos atrás. Na literatura nórdica as árvores eram vistas como guardiãs e protetoras, pois Lif e Leifthrasir (Líf e Leifþrasir) sobreviverão ao Ragnarök no Bosque do Tesouro de Mimir (Hoddmímis Holt), que é outra denominação da Yggdrasill; Örvar-Oddr usou um tipo de armadura feito de casca de árvore (næframaðr). Então, o significado de "caixa [de madeira]" também é muito possível, e o mais provável também diante do cenário. A caixa boiaria sobre as águas contendo alimento com o casal gigante. 

Ataúde feito de tronco de árvore da garota de Egtved, Dinamarca, datado de 3500 mil anos. Foto de internet.

 O moinho também é associado ao mar como no caso de Grótti, que era do rei Frodi (Fróði). Segundo se conta, as gigantas escravas Fenja e Menja afundaram o navio do rei Mysing (Mýsingr) moendo sal, devido ao peso. Quando a pedra do moinho afundou no mar causou um redemoinho gigante. 

Fenja e Menja em Grótti, arte de Carl Larsson e Gunnar Forssell de 1886.

Moinho nórdico do período de 1400 d.C., o transporte de Bergelmir em questão seria a caixa de madeira logo abaixo da pedra circular. Fonte da imagem: https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/images/b-land-1400-norse-mill-s.jpg 

 Como foi dito acima, é difícil saber o significado correto, até porque este período é anterior a Terra, e não havia madeira, pedra ou metal, porque estes elementos foram fabricados do corpo de Ymir pelos deuses. Contudo, como a região do Ginnungagap é imensamente colossal e Ymir era enorme, é possível que levou algum tempo para as águas chegarem até onde Bergelmir vivia, o que daria tempo para ele fabricar o seu transporte e nesse caso os deuses já teriam criado a Terra do corpo do gigante primordial e o solo brotado vegetais. Isso parece ser o caso aqui, porque os deuses criam coisas com seu poder e vontade quase que instantaneamente. A Völuspá parece corroborar esta ideia, pois o trio criador elevou Midgard (a carne de Ymir) do mar (o sangue de Ymir) e na sequência, então, os raios solares fizeram as plantas brotaram.

 Porém, este não é o único dilúvio nas narrativas nórdicas, pois há menção a mais dois: o dilúvio causado por Jormungand (Jörmungandr) quando ele combaterá Thor, e outro quando tentaram profanar o túmulo de Balder.

 Na Völuspá e na Edda de Snorri é comentado que no Ragnarök a serpente se levantará do oceano espalhando as ondas e cuspindo veneno para todo lado. Assim que o monstro encontrar Thor, eles combaterão, e o deus do trovão vencerá o inimigo antes de cair, então, os homens deixarão seus lares e logo depois a Terra afunda no mar. É um outro dilúvio universal que está por vir no final dos tempos. Isso porque na religião nórdica o universo é cíclico: nasce, se mantém por um tempo, morre, renasce e assim vai.

 Saxo Grammaticus mencionou um episódio diferente sobre a morte de Balder, o filho de Odin. O semideus (nesta versão) morreu depois de enfrentar Hod (Höðr), e foi sepultado. Este túmulo era muito famoso, e os homens de um certo Harald decidiu abri-la em busca de tesouros. Mas, pararam de terror, pois de repente o cume da sepultura se partiu e ressoou poderosamente e uma torrente de água despencou como um dilúvio, enchendo tudo na região instantaneamente. Para salvar suas vidas, os homens fugiram do local. Saxo pareceu não acreditar na narrativa pagã que ele registrou e a descreveu com sua visão cristã, acreditando que era ilusão fantasmagórica conjurada por mágica, mas que não era real. É claro que a enchente aqui é de menor proporção em relação aos outros exemplos, mas não deixa de ser menos importante ou curioso. Este episódio lembra a narrativa de Snorri onde ele comentou que todos os seres choraram por Balder exceto Loki disfarçado. Devo lembrar que esses exemplos de dilúvios também podem ser um eco longínquo de geleiras derretendo que encheram regiões do polo Norte no passado (da última era glacial?) que ficou registrado na memória dos nativos de lá daquele tempo e passados oralmente de geração para geração.

 É notável que nos três dilúvios nórdicos mencionados esta relacionado a morte de divindades: Ymir antes da criação da Terra, Balder no passado já na Terra, e Jormungandr contra Thor no fim dos tempos que ocorrerá segundo as Eddas.


FONTES:

An Icelandic-English Dictionary, Richard Cleasby & M. A. Gudbrand Vigfusson

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes vol. 1, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

The Elder or Poetic Edda Commonly Known as Sæmund's Edda, Olive Bray

The Poetic Edda, Carolyne Larrington

The Prose Edda, Jesse L. Byock

SITES CONSULTADOS:

https://en.natmus.dk/historical-knowledge/denmark/prehistoric-period-until-1050-ad/the-bronze-age/the-egtved-girl/the-egtved-girls-grave/

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://www.locallocalhistory.co.uk/brit-land/power/page01.htm

https://septisphere.wordpress.com/2019/01/13/pre-industrial-machines-norse-mill/

segunda-feira, 3 de abril de 2023

A origem das Nornes

 As Nornes (Nornir) estão entre as forças mais poderosas da cosmovisão nórdica, senhoras dos destinos dos homens (menn). Elas eram as fiandeiras do destino que moldavam as vidas dos homens. Na Völuspá é dito que elas registravam seu julgamento em placas de madeiras (skáru á skíði, tiradas dos ramos da Yggdrasill?), enquanto no poema Helgakviða Hundisgsbani I é dito que eram em fios de ouro (gullin símu).

As três grandes Nornes: Urd (a mais velha), Verdandi (a matrona) e Skuld (a mais jovem vestida como uma Valquíria) por C. Eherenberg.

 Eram três: Urd (Urðr), Verdandi (Verðandi) e Skuld. A última cavalgava entre as Valquírias (Valkyrjur) para escolher os mortos. Mas, segundo outra fonte, haviam muitas Nornes que pertenciam as raças dos Æsir, dos elfos (álfar) e dos anões (dvergar).

 Porém, a origem das três maiores não é bem clara, embora elas sejam de origem gigante como podemos notar na Völuspá. Vale lembrar que todos os seres são aparentados por laços de sangue através de Ymir (Ýmir) e das dádivas dos trio criador (Óðinn, Vili e ), pois o corpo do gigante foi usado para a criação do universo de onde muitos deuses, homens, anões e outros seres surgiram. E esse parece ser o caso das três Nornes, porque na versão do poema da Völuspá do konungsbók, elas parecem surgir do mar ao lado da raiz de Yggdrasill ("þrjár ór þeim sæ/três saídas do mar"), então, podemos entender que elas "nasceram'' do sangue de Ymir assim que foi morto. A palavra "ór" em nórdico arcaico significa "saído de [algum lugar]" ou "de [origem]". Por isso, elas governam os destinos, porque elas surgiram do primeiro ser desmembrado que deu origem as famílias pelo sangue e poder do trio criador (há uma conexão profunda aqui). A versão do poema da Völuspá do Hausksbók sugere que elas viviam perto da árvore num salão ("þrjár ór þeim sal/três saídas do salão"). Entre as duas versões, a do Konungsbók faz mais sentido (que inclusive é mais antigo dos dois), pois é dito que elas vieram de Jotunheim ("unz þrjár kvámu þursa meyjar, ámáttkar mjök, ór Jötunheimum/até chegarem às três donzelas Þursar, muito poderosas, do Jotunheim"), então elas surgiram do sangue de Ymir transformado em mar que preenchia a região onde vivia os gigantes antes de serem exterminados pelo dilúvio, exceto Bergelmir e sua esposa. O poema Vafþrúðnismál parece confirmar essa ideia, pois é dito que as três filhas de Mogthrasir (Mögþrasir), que provavelmente é uma referência as Nornes aqui, viviam perto de rios e traziam a sorte para o mundo (Þrjár þjóðár falla þorp yfir meyja Mögþrasis; hamingjur einar þær er í heimi eru, þó þær með jötnum alask/Três grandes rios correm sobre a terra das donzelas de Mogthrasir; elas trazem a sorte para o mundo, embora elas fosse criadas pelos gigantes"). As filhas de Mogthrasir são três assim como as Nornes, todas elas viviam perto do mar, elas eram associadas as sortes dos indivíduos e relacionadas aos gigantes. A ideia de deusas surgidos do mar ou algum tipo de liquido divino tem paralela noutras religiões antigas: Afrodite, segundo Hesíodo, surgiu do sangue e sêmen de Urano que caiu no mar; Lakshmi, no hinduísmo, surgiu do oceano de leite quando os Asuras e Devas o agitaram. A ideia de mulheres associadas as águas, as fontes, a sorte, destino e fortuna também se encontra no folclore mundial. Mogthrasir significa "Aquele Que Luta Por Filhos" indicando a capacidade do gigante de gerar muitos filhos, uma característica de Ymir.

 Conclusão: as Nornes nasceram do sangue primordial de Ymir quando o trio criador Odin, Vili e Ve o mataram e por isso elas governam o destino e o nascimento dos seres humanos. Porque a vida nasceu da morte e é para a morte que a vida retorna. Todos os seres humanos repetem o processo de Ymir: nascem, morrem, apodrecem, são devorados por larvas e os nutrientes do cadáver mantém a manutenção da vida, alimentando e dando continuidade a outras criaturas do ciclo da natureza. 


FONTES:

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Edda, Anthony Faulkes

Gods and Myths of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

The Poetic Edda, Caroylne Larrington

SITES CONSULTADOS:

https://web.archive.org/web/20090413124631/http://www3.hi.is/~eybjorn/ugm/vsp3.html

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

segunda-feira, 27 de março de 2023

Os deuses Vanir, seus descendentes e relacionados

 Pouco é contado sobre os deuses Vanir nas antigas fontes escritas em comparação aos Æsir, isso provavelmente por causa do teor sexual e feminino de seus cultos. Quem compilou quase todo o material da cosmovisão nórdica pré-cristã foram pessoas convertidas ao cristianismo e após o período pagão, e eles podem ter suprimido e censurado os contos e/ou práticas do Vanir.

Trio Vanir: Njord (Njörðr), Freyr e Freyja, arte tirada da internet.

 Mas, vamos ao que interessa, provavelmente vocês conhecem o trio mais famoso dos Vanir: Njord e seus filhos Freyr e Freyja que foram enviados aos Æsir como reféns e se tornaram uns dos seus principais deuses, mas existem outros membros dessa família citados nas fontes antigas:

Yngvi era filho de Odin (Óðinn) e pai de Njord, não confunda com o Yngvi-Freyr que é filho deste último, pois são duas divindades distintas. Yngvi é descrito como rei da Turquia (Tyrkjakonungr), mas ele foi evemerizado o que torna difícil de traçar conjecturas (teoria de que deuses antigos eram mortais divinizados). Desse modo, ele aparentemente foi o primeiro Vanir. Segundo se conta, as famílias suecas reais de Uppsala provem dele e de Freyr (seu neto), por isso eles são chamados de Ynglingar

Gullveig foi a causa da guerra Æsir-Vanir, ela foi até Asgard (Ásgarðr), mas foi queimada e espetada por lanças três vezes, mas renasceu. Ao que tudo indica, ela foi tratada assim por causa de suas habilidades com a magia (ela é praticante de seiðr, prática comum entre os Vanir) e também por causa do ouro (ela é associada a corrupção). Alguns pesquisadores identificam Gullveig com Freyja por causa de algumas similaridades: ambas gostam de ouro, ambas são praticantes de seiðr, e ambas são ditas ter ensinado seiðr para o Æsir (é o que a estrofe da Völuspá dá a entender sobre Gullveig). É difícil saber ao certo, mas é provável que Gullveig fosse uma mensageira dos Vanir e não a própria Freyja, porém, Snorri mencionou que a irmã de Freyr chegou a andar por terras distantes com nomes diferentes. Depois que renasceu, Gullveig passou a ser chamada de Heiðr.

As 9 filhas de Njord (Njarðar dœtr níu) são citadas como um grupo de deusas que riscavam runas no poema Sólarljóð, mas apenas dois nomes foram registrados: a mais velha delas é Ráðveig ou Böðveig e a mais nova entre elas é Kreppvör.

Njord e sua irmã (Njarðar ok systur hans) é uma deusa mencionada como companheira de Njord entre os Vanir, mas ele a deixou quando foi levado a Asgard como refém. O nome dela não é recordado nas antigas fontes, mas é possível que ela seja Nerthus, a deusa germânica citada por Tácito no 1º século, devido a similaridade dos nomes Njord-Nerthus (indicando um par tal como Freyr e Freyja), a associação deles com a água e com a carruagem. Na Ynglinga Saga é narrado que entre o Vanir era comum casamento e/ou relações sexuais entre parentes.   

Kvasir aparece como membro do Vanir na Ynglinga Saga, mas na Edda em Prosa ele foi criado pelas duas tribos divinas: Æsir e Vanir, que cuspiram numa vasilha e ele veio a vida. Ele era o mais sábio dos deuses, dotado de grande intelecto e podia responder qualquer coisa. Ele foi morto por anões, que fabricaram o Hidromel dos Poetas. Ele andou pela Terra ensinando sabedoria para os homens antes de ser assassinado.     

Hnoss e Gersemi eram as belíssimas filhas de Óðr e Freyja. Óðr pode ser Óðinn (a etimologia do nome é relatado) ou talvez outro personagem. Óðr deixou Freyja, mas a deusa o procurou pelo mundo.   

Fjölnir era filho de Freyr e Gerd (Gerðr) e ele governou a Suécia. Ele tinha poder sobre as estações e colheitas, que é herança do Vanir. Ele foi evemerizado. Pertence a família Ynglingar, que são descendentes de Freyr ou Yngvi Freyr.

Svegðir filho de Fjölnir e neto de Freyr. Ele foi evemerizado. Pertence a família Ynglingar, que são descendentes de Freyr ou Yngvi Freyr.

Vana era esposa de Svegðir e ela é uma deusa que habitava no Vanaheim. Svegðir foi até a terra do Vanir para se casar com ela.

Vanlandi era filho de Svegðir e Vana. Ele foi evemerizado. Pertence a família Ynglingar, que são descendentes de Freyr ou Yngvi Freyr.

Visbur (Vísburr) era filho de Vanlandi e Drifa. Ele foi evemerizado. Pertence a família Ynglingar, que são descendentes de Freyr ou Yngvi Freyr.

 Depois, outros continuaram a linhagem real e eram associados aos Ynglingar: Dómaldi (filho de Visbur), Dómarr (filho de Dómaldi), Dyggvi (filho de Dómarr), Dagr (filho de Dyggvi), Agni (filho de Dagr), Alrekr e Eiríkr (filhos de Agni), Yngvi e Álfr (filhos de Alrekr), Hugleikr (filho de Álfr), Jörundr (filho filho de Yngvi), Aun (filho de Jörundr), Egill Tunnudólgi (filho de Aun), Óttarr (filho de Egill), Aðils (filho de Óttarr), Eysteinn (filho de Aðils), Yngvarr (filho de Eysteinn), Önundr (filho de Yngvarr), Ingjaldr (filho de Önundr, e o último dos reis suecos Ynglingar, ele foi conquistado pelo rei da Escânia Ivar Vidfamne, mudando assim a linhagem real).  

 As dinastias reais germânicas eram relacionadas a Odin, Freyr e Heimdall (Heimdallr), e seus descendentes possuíam algum poder divino, mas eles são mais ou menos semideuses, no caso dos Ynglingar, eles possuíam poder sobre o bom tempo, estações e colheita. Linhagem real divina era algo comum na antiguidade, pois vários reis e governantes eram considerados filhos ou escolhidos dos deuses. As dinastias reais relacionadas a Odin eram guerreiras, conquistadoras e forjadoras de império, enquanto as dinastias reais relacionadas a Freyr eram voltadas para práticas sexuais, algumas ligadas a homossexualidade e divinação (os descendentes de Freyr praticavam cultos que eram considerados efeminados por um guerreiro que era devoto de Odin). A linhagem real de Freyr também era voltada para abundância e prosperidade. Por isso, eu creio, que os copistas cristãos (que registravam os textos) preferiu não registrar a cultura ligada ao Vanir, salvo alguma coisa aqui e ali, que eram necessárias a contextualização de um determinado tema. O culto Vanir era extremamente feminino onde profetisas (Völur no plural e Völva no singular) saiam pelas cidades com cortejo de mulheres e até homens. Muitas eram temidas e veneradas. Os homens que praticavam magia Vanir (seiðr) eram vistos como efeminados, mas eram temidos.

 Um adendo: não devemos nunca generalizar as coisas: pois Odin aprendeu seiðr com Freyja, e havia guerreiros dedicados ao Vanir que usavam o símbolo do javali como proteção nas batalhas. Com isso, podemos entender que após a guerra Æsir-Vanir, as duas principais tribos divinas trocaram conhecimentos e habilidades, fortalecendo ainda mais seus poderes e entendimentos.

  

FONTES:

A Genealogia dos Deuses Nórdicos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

Gods and Myths of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

Heimskringla: History of the Kings of Norway, Snorri Sturluson trad. Lee M. Hollander

Saxo Grammaticus Gesta Danorum: The History of the Danes Volume I & Volume II, trad. Peter Fisher

Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

http://etext.old.no/Bugge/solar.html

http://www.heimskringla.no/wiki/%C3%8Dslendingab%C3%B3k

http://www.heimskringla.no/wiki/S%C3%B3larlj%C3%B3%C3%B0

https://heimskringla.no/wiki/Ynglinga_saga

https://www.sacred-texts.com/cla/tac/g01040.htm

quinta-feira, 23 de março de 2023

Os nomes dos planetas e astros na língua Nórdica

 Pouco se sabe sobre a astronomia germânica, porque como já falei antes, os povos germânicos passavam quase todos os seus conhecimentos oralmente. Mas, existe alguma coisa aqui e ali, que é um verdadeiro quebra-cabeças.

Deuses dos planetas e da semana: Tyr (Marte), Odin (Mercúrio), Thor (Júpiter), Frey (Saturno), Freyja e/ou Frigg (Vênus). Arte tirada da internet.

 Como vimos no post anterior, os povos germânicos transliteraram os nomes dos dias da semana quando adotaram a semana romana de 7 dias. Porém, irei focar nos escandinavos para o post não ficar muito longo. O domingo foi chamado, então, pelos escandinavos de "dia do Sol" ou Sunnudagr (Søndag em dinamarquês e norueguês, Söndag em sueco). A segunda-feira era o "dia da Lua" ou Mánadagr (Mandag em dinamarquês e norueguês, Måndag no sueco). A terça-feira era o "dia de Tyr" ou Týsdagr (Tirsdag no dinamarquês e norueguês, Tisdag no sueco). A quarta-feira era o "dia de Odin" ou Óðinsdagr (Onsdag em dinamarquês, norueguês e sueco). A quinta-feira era o "dia de Thor" ou Þórsdagr (Torsdag em dinamarquês, norueguês e sueco). A sexta-feira era o "dia de Freyja" ou Frjádagr (Fredag em dinamarquês, norueguês e sueco). O sábado era o "dia do banho" ou Laugardagr (Lørdag em dinamarquês e norueguês, Lördag em sueco). Os 7 dias da semana eram um reflexo dos 5 planetas visíveis a olho nu juntamente com o Sol e Lua. É claro que em cada país nórdico o dialeto mudou um pouco, mas o significado é o mesmo. Porém, a semana islandesa originalmente não começava no domingo, e sim sempre na quinta-feira no verão e sempre na sexta-feira e/ou sábado no inverno. Isso porque as estações eram divididas em duas partes de 6 meses: verão e inverno (a data do começo do inverno na sexta-feira e sábado existe contradições).

 Contudo, os 5 planetas, e a Lua tinham outras denominações, mas que eram uma referência aos deuses nórdicos. Isso foi registrado no manuscrito islandês Rím I do século 12 d.C. por sacerdotes cristãos (essa obra era uma compilação da contagem de tempo, calendário, sinais do zodíaco, que eram usados pela igreja pra determinar a data de suas celebrações). Vale lembrar que esses nomes podem ou não ser pré-cristãos, porque na Islândia os nomes dos deuses nórdicos na semana foram substituídos depois da cristianização e o mesmo pode ter ocorrido com o nome dos planetas. Na Clemens Saga que é datado entre o século 12 ou 13 d.C. podemos ler algo curioso: o planeta Vênus é chamado de Friggjar Stjarna ("Estrela de Frigg"). Voltando ao manuscrito Rím I, a Lua era chamada de Tungl ("Lua"), Marte era chamado Þrekstjarna ("Estrela da Coragem"), Mercúrio era Málsstjarna ("Estrela do Discurso"), Júpiter era Meginstjarna ("Estrela do Poder"), Vênus era Blóðstjarna ("Estrela de Sangue"), e Saturno era Gnógleiksstjarna ("Estrela da Abundância"). O Sol permaneceu com sua denominação comum: Sól ("Sol"). As características dos nomes planetários neste manuscrito islandês batem com os deuses Máni (deus da Lua, pois na Edda Em Prosa "Tungl" aparece como epiteto da Lua), Tyr (deus da coragem), Odin (deus da sabedoria e da escrita/palavra), Thor (deus do poder, pois ele é descrito como dotado de força e poder na Edda em Prosa e, por isso, ele vence todas as criaturas vivas, sua residência Þrúðheimr significa "Mundo do Poder"), Freyja (ou Frigg, deusa das mulheres, do fluxo menstrual, ambas deusas eram associadas ao parto na Edda Poética) e Njord (ou Freyr, deus da abundância). 

 Vênus era associada principalmente com Freyja na Escandinávia, mas ocasionalmente com Frigg também. Isso se deve por causa da confusão entre as duas deusas que possuem diversas similaridades. O nome do planeta Saturno: Gnógleiksstjarna ou "Estrela da Abundância" somado ao sábado que era o "dia do banho" e relacionado ao mesmo planeta parece confirmar sua conexão com Njord (ou Freyr). Njord era o deus dos mares e da abundância, e seu filho Freyr era associado ao mar, pois ele era dono do navio Skíðblaðnir e ele é o deus da abundância também.

 Seguindo a lógica da Clemens Saga é possível que os outros planetas eram assim denominados na era pré-cristã: Týs Stjarna ("Estrela de Tyr", Marte), Óðins Stjarna ("Estrela de Odin", Mercúrio), Þórs Stjarna ("Estrela de Thor", Júpiter), e Njarðar Stjarna ("Estrela de Njord", Saturno) ou Freys Stjarna ("Estrela de Freyr", Saturno). Infelizmente, apenas a "Estrela de Frigg" é mencionado nesta saga, embora incerto, provavelmente era desse jeito que os outros corpos celestes deveriam ser chamados no passado. Corroborando assim com os dias da semana escandinavo que contém o nome dos deuses correspondente aos 5 planetas, Sol e Lua. Porém, a Clemens Saga é uma tradução islandesa do latim da vida de São Clemente I (Papa Clemente I que também é conhecido como Clemente Romano). Desse modo, o nome do planeta Friggjar Stjarna (Vênus) pode apenas ser uma tradução do latim para o islandês, mas a evidência do fato dos dias da semana conter nomes de deuses, então, é muito possível que seja verdadeiro. O Templo de Júpiter era traduzido como Þórshof ('Templo de Thor") nos manuscritos islandeses, e na Escandinávia existem locais com essa denominação, corroborando a ideia, lugares onde o deus do trovão era realmente venerado. Nomes transliterados mantém algum fundo de verdade por assim dizer. 


FONTES:

Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall

Invocando os Deuses Nórdicos: dos tempos primitivos aos tempos modernos, Marcio Alessandro Moreira (Vitki Þórsgoði)

Gods and Myths of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson

Myth and Religion of the North: The Religion of Ancient Scandinavia, E. O. G. Turville-Petre  

The Icelandic Calendar, Svante Janson

SITES CONSULTADOS:

https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i

https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar 

http://www.septentrionalia.net/etexts/

https://time-meddler.co.uk/the-old-icelandic-calendar/

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