A luta cósmica entre a ordem e o caos aparece em todas as religiões antigas, e era representado pelo combate feroz entre o deus do céu que empunha o raio contra a serpente das profundezas que é o antigo dragão. É um tema recorrente: na Grécia temos Zeus contra Tifão, na Babilônia era Marduk contra Tiamat, na Índia temos Indra contra Vrtra, os Hurritas contavam de Teshub versus Illuyanka, os Eslavos narravam sobre a batalha entre Perun e Veles. Mas, há muitos outros exemplos deste épico confronto, e na Escandinávia era representado por Thor (Þórr) contra Jormungand (Jörmungandr) ou Serpente Midgard (Miðgarðsormr).
Nos exemplos citados acima quase sempre o deus do céu mata a serpente e manda o inimigo vencido para o submundo (ou Terra da Morte). Tá, mas e no Norte? No Norte existe duas versões como veremos a seguir.
Nas Eddas (Eddur), Thor enfrentou a serpente Jormungand três vezes:
- Quando o Thor tentou levantar o gato de Utgard-Loki (Útgarðr-Loki) que na verdade era Jormungand disfarçada.
- Quando o Thor foi pescar a serpente com Hymir, depois do encontro com o monstro no salão de Utgard-Loki.
- Quando o Thor e a serpente irão se enfrentar novamente no fim dos tempos.
Segundo o Gylfaginning, o primeiro encontro entre o deus e a serpente ocorreu quando Thor foi visitar os gigantes, e acabou sendo enganado em desafios ocultados por magia. Utgard-Loki desafiou Thor a levantar seu gato do chão, mas era Jormungand. Thor conseguiu levantar uma de suas patas do chão, fazendo a serpente se contorcer a tal modo que mal conseguiu rodear as Terras. Depois, quando estava para partir da cidadela dos gigantes, Thor ficou sabendo do ocorrido e de seu feito, então, ele decidiu matar o monstro.
O segundo encontro ocorreu após isso, o deus foi até Hymir disfarçado de jovem (ele tem poder de mudar de forma) querendo ir pescar com o gigante. Os dois foram até o oceano e Thor fisgou a serpente. Aqui o relato é divergente: uma versão (a do Gylfaginning, a do escaldo Bragi Boddason, a estela de Gosforth e a estela de Hørdum Ty) conta que Hymir cortou a corda de Thor, noutra versão (a Hymiskviða, a estela Ardre VIII e a pedra rúnica de Altuna) não existe a intervenção de Hymir. Ambas versões são obscuras e ambíguas, pois elas não clarificam de forma precisa se o deus matou a serpente.
No terceiro encontro registrado na Völuspá e Gylfaginning, o deus e a serpente se matarão, mas Thor finalizará o inimigo primeiro, saindo vitorioso. Porém, ele dará nove passos e cairá também.
Como foi falado antes no post anterior, o prólogo da Edda em Prosa mencionou que Thor matou o maior dos dragões que deve ser Jormungand (einn inn mesta dreka), depois o deus se casou com Sif. No Hymiskviða é dito que Thor golpeou a cabeça da serpente violentamente (hamri kníði háfjall skarar). O escaldo Gamli vai além e disse que Thor matou a serpente com o golpe do martelo na cabeça do monstro (grundar fisk með grandi gljúfrskeljungs nam rjúfa). Gamli viveu no século 10 d.C., mas embora os fragmentos de sua poesia não clarifica se o monstro foi morto antes ou durante o Ragnarok, os kenningar (metáforas da poesia viking) parecem indicar que ocorreu durante a pescaria ao julgar pelos indicativos: grundar fiskr ou "peixe da Terra" (Jormungandr no oceano), e grand gljúfrskeljungs ou "destruidor de baleia do desfiladeiro (o martelo de Thor que destrói monstros e usado aqui para se referir a gigantes)" que são referências associados ao mar, no caso a pesca. Hymir pescou baleias na versão do Hymiskviða, corroborando a metáfora do martelo de Thor ("destruidor de baleia do desfiladeiro") como sendo durante a pesca. O escaldo Úlfr Uggason é explícito: ele narrou um salão onde ele estava que tinha imagens entalhados da vitória de Thor sobre a serpente, Thor arrancava a cabeça do monstro abaixo das ondas (Víðgymnir laust Vimrar vaðs af fránum naðri hlusta grunn við hrönnum). Úlfr também viveu no século 10 d.C. e a sua poesia é referente a pesca (hrönnum é uma metáfora para o mar, pois no Ragnarök a batalha acontecerá no campo Vigríðr na terra dos Æsir). Com a intervenção ou não de Hymir, na versão de Gamli e Úlfr, Thor matou a serpente com seu martelo. Curiosamente, no Hymiskviða, Thor é denominado de "O Único Matador da Serpente (Orms Einbani)" indicando uma possível destruição do monstro no poema. A serpente era colossal (um alvo muito grande) e o martelo de Thor não erra o alvo, então, mesmo no caso do corte da linha de pesca por Hymir, o deus atirou a arma no monstro e acertou na cabeça.
Pagina original do manuscrito GKS 2365 4º (também conhecido como Codex Regius ou Konungsbók que significa "Livro do Rei") datado de aproximadamente 1270 d.C.. Na foto destaquei em vermelho o texto onde Thor é chamado de "Orms Einbani" ou "O Único Matador da Serpente". Pouco abaixo há um espaço vazio no texto (logo após o ataque de Thor na serpente), embora não indique lacuna, é muito provável que parte do texto está faltando.
No Gylfaginning também é comentado por Snorri que os homens pagãos diziam que Thor havia matado a serpente antes do Ragnarök e durante a pesca, arrancando-lhe a cabeça com uma martelada, mas que ele achava que o monstro sobreviveu para poder morrer junto com o deus no final dos tempos (En Þórr kastaði hamrinum eftir honum, ok segja menn, at hann lysti af honum höfuðit við hrönnunum, en ek hygg hitt vera þér satt at segja, at Miðgarðsormr lifir enn ok liggr í umsjá). Os escaldos Gamli e Úlfr Uggason corroboram com está versão onde Thor matou a serpente durante a pesca (citações registradas no Skáldskaparmál). Ou essa batalha cósmica entre o deus do trovão vs. a serpente tinha duas versões ou a versão original é onde o filho da Terra triunfava e saia ileso da pescaria que terminava com a morte do monstro, enquanto a versão da Völuspá e Gylfaginning seria rearranjado depois do contato com o cristianismo (por influência cristã) ou mesmo adulterado. Na bíblia, no apocalipse, Deus derrotará o dragão e o lançara no abismo, provavelmente esta versão influenciou os escandinavos pagãos de fé mista (que acreditavam em deuses e na trindade cristã ao mesmo tempo, algo citado nas sagas) que tiveram contato com o cristianismo nas ilhas britânicas durante o período da era Viking. Gerando uma cosmovisão dessa batalha mista, hibrida, com elementos pagãos e cristãos. O poema Lokasenna parece confirmar que a serpente estava morta durante o Ragnarök, pois Loki provocou Thor dizendo que ele não estará tão corajoso quando for enfrentar o lobo no fim dos tempos (Jarðar burr er hér nú inn kominn, hví þrasir þú svá, Þórr? En þá þorir þú ekki, er þú skalt við úlfinn vega, ok svelgr hann allan Sigföður). Ué, pra onde a serpente foi então? Não é uma evidência que a serpente já estava morta?
Outra pagina original do manuscrito GKS 2365 4º. Na foto destaquei em vermelho o texto onde Loki falou que Thor combaterá o lobo ("Úlfinn vega") e não a serpente no Ragnarök. Como Thor é chamado de "O Único Matador da Serpente" antes de enfrentar o monstro no Hymiskviða, é possível que o deus exterminou a serpente na pesca e a fala de Loki confirmou isso. Se o Ragnarök era uma profecia onde o filho da Terra e o filho de Loki se matarão, é provável que Thor a anulou.
As versões de Gamli e Úlfr onde Thor decapitou a serpente são muito importantes porque são datados de meados do século 10 d.C. que corresponde ao final do período pagão. A composição da Völuspá também é datada do final do século 10 d.C., porém a influência cristã na obra é inegável (note que no final pagão temos: os filhos dos deuses, um casal humano, uma árvore, um dragão e um deus que surgirá, que é exatamente o começo que é dito na bíblia: deus e seus anjos, um casal humano, uma árvore e uma serpente), o que coloca esta versão em dúvida. Porque parece que o fim do paganismo abre alas para o cristianismo, a antiga fé morre para dar entrada para a outra. Lembrando que usar "roupagem pagã" nos elementos cristãos (e vice versa) era comum no norte assim que o cristianismo chegou na Escandinávia: Jesus é apresentado como um guerreiro, São Olavo era descrito como Thor, Santa Lucia é associada ao Sol o que lembra a deusa Sunna e etc. Desse modo, elementos pagãos podem ter sido reinterpretados com "roupagem cristã" no período de transição entre as duas religiões. A possibilidade da profecia da Völva tenha sido anulada é grande, pois ela narrou eventos que poderia acontecer, então, Thor matou a serpente na pesca, evitando assim o pior no Ragnarök. Vale lembrar que narrações religiosas possuem muitas versões que nem sempre batem, mas provavelmente a versão mais antiga é onde Thor matava a serpente e sobrevivia ileso (algo mencionado pela renomada Hilda R. E. Davidson). A grande maioria das pessoas preferem acreditar na versão da Völuspá que é mais famosa e bem construída, do que nas versões de Gamli e Úlfr porque ambas conseguem pôr o Ragnarök em xeque.
Os termos "laust af" e "lysti af" (de "ljósta af") usado na ação de Thor na cabeça da serpente no texto tem sentido de cortar fora, separar, arrancar, ou remover.
Então, temos a opinião de dois homens pagãos, Gamli e Úlfr, que afirmam que Thor matou a serpente na pesca; e a opinião de Snorri que era cristão do século 13 d.C. achando que o monstro sobreviveu. Qual opinião é mais importante? A dos pagãos que veneravam Thor ou a de Snorri que era cristão e dizia que os deuses eram homens divinizados? Pensem nisso!
Outra coisa deve ser mencionada: a maioria das fontes sobre a religião nórdica e seus deuses chegaram até nós pelas mãos da igreja (exceto alguns textos rúnicos e arte pagã nas estelas), alguns relatos são provados pela arqueologia, mas devemos ter muito cuidado aqui, pois esta mesma instituição, no passado, fraldava milagres, relíquias, e era comum eles insultarem e rebaixarem as divindades nas sagas. Por isso devemos ter olhar crítico sempre! Os povos pagãos da Escandinávia passavam sua história oralmente, e as runas que era o alfabeto deles, era usado por quem entendia, afinal nem todos sabiam ler.
FONTES:
Dictionary of Northern Mythology, Rudolf Simek trad. Angela Hall
Edda, Anthony Faulkes
Gods And Myths Of Northern Europe, Hilda R. E. Davidson
Myth and Religion of the North: The Religion of Ancient Scandinavia, E. O. G. Turville-Petre
Myths of the Pagan North: The Gods of the Norsemen, Christopher Abram
Norse Mythology: A Guide to the Gods, Heroes, Rituals, and Beliefs, John Lindow
Scandinavian Mythology, Hilda R. E. Davidson
The Poetic Edda, Henry Adams Bellows
Thor's Hammer, Hilda R. E. Davidson
SITES CONSULTADOS:
https://heimskringla.no/wiki/Edda_Snorra_Sturlusonar
https://heimskringla.no/wiki/Eddukv%C3%A6%C3%B0i
http://www.vsnrweb-publications.org.uk/Saga-Book%20XXIV.pdf